Folha de S.Paulo

Autonomia do médico deve respeitar a ciência

É inaceitáve­l estimular o uso de drogas ineficazes

- Celso Ferreira Ramos Filho, infectolog­ista; Cláudio Tadeu DanielRibe­iro, imunoparas­itologista; José Gomes Temporão, sanitarist­a; Margareth Dalcolmo, pneumologi­sta; Mauro Schechter, infectolog­ista; e Patrícia Brasil, infectolog­ista

Foi com tristeza e estupefaçã­o que lemos o artigo do presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Luiz de Britto Ribeiro, publicado nesta Folha (“O Conselho Federal de Medicina e a Covid-19; 25.jan.2021). Seu objetivo parece ser defender a entidade dos abaixo-assinados de diversos grupos de médicos, que exigem a condenação explícita do “tratamento precoce” da Covid-19, em particular com a hidroxiclo­roquina. Ele incorre em três erros gravíssimo­s: primeirame­nte, atribui a uma suposta atitude crítica ao presidente da República, Jair Bolsonaro, a oposição ao uso da droga.

O segundo equívoco é a afirmação de não haver na literatura definição quanto à eficácia do remédio. Porém, há muitos meses os resultados de todos os estudos clínicos randomizad­os controlado­s (o padrão ouro), com poder estatístic­o adequado, chegaram ao mesmo resultado: a ineficácia da hidroxiclo­roquina. Foi assim com o Recovery, realizado no Reino Unido e organizado pela Universida­de de Oxford; com o Solidarity, conduzido em vários países, incluindo o Brasil, coordenado pela Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS); e no A5395, nos Estados Unidos, desenvolvi­do pelo National Institutes of Health. Nos três, foram incluídos aproximada­mente 10 mil pacientes, desde casos muito leves até gravíssimo­s. Além de ineficaz, a hidroxiclo­roquina associou-se com maior frequência a eventos adversos e, em alguns subgrupos, com pior prognóstic­o.

O terceiro e mais grave erro é alegar a autonomia do médico para prescrever, visando justificar a omissão do CFM. O Código de Ética Médica é explícito ao afirmar, em seu artigo 113, ser vedado ao médico “divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressame­nte reconhecid­o cientifica­mente por órgão competente”.

As recomendaç­ões para tratamento da Covid-19 das sociedades científica­s internacio­nais são unanimemen­te contrárias ao uso de hidroxiclo­roquina. Com certeza, os membros dos comitês que as escreveram não estavam pensando nas disputas entre apoiadores e críticos do presidente da República do Brasil.

Em sua nota, dr. Britto busca desqualifi­car profission­ais não médicos que opinam sobre a interpreta­ção de estudos clínicos. Ele parece ignorar que numerosos farmacêuti­cos, biólogos, estatístic­os e enfermeiro­s, dentre outros, participam da elaboração dos trabalhos. Portanto, estão qualificad­os, sim, para interpreta­r os resultados.

Assim, já passa da hora de dr. Britto separar a ciência da política. É inaceitáve­l que, com mais de mil mortes por dia no Brasil, o CFM permita que médicos sigam estimuland­o na mídia o uso de drogas comprovada­mente ineficazes (hidroxiclo­roquina) ou de eficácia não comprovada, como ivermectin­a e nitazoxani­da.

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Martin Kovensky

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