Folha de S.Paulo

Corrupção contra impeachmen­t

A visão de que o impeachmen­t não tem base pública peca por superficia­lidade

- Janio de Freitas Jornalista

A numerosa compra de parlamenta­res com verbas e cargos públicos, praticada por Jair Bolsonaro e sua tropa para conduzir as eleições internas de Câmara e Senado, viola a Constituiç­ão no princípio básico da independên­cia entre os Poderes. Mas o objetivo maior desse ataque ao regime, definindo amanhã quem serão os novos presidente­s da Câmara e do Senado, não é a propalada aprovação de reformas. É o bloqueio dos requerimen­tos de impeachmen­t, os cerca de 65 relegados (até a sexta-feira em que escrevo) e os vindouros.

Bolsonaro, ao fim de reunião com deputados a meio da semana, ofereceu a confissão que, no entanto, não suscitou a defesa da Constituiç­ão pelos Poderes disso incumbidos. “Vamos, se Deus quiser, participar, influir na [eleição da] presidênci­a da Câmara.” O que já ocorria e, no Senado, começava a acelerar-se. Nos dois plenários, a venalidade do atual MDB consagrou-o como “partido da bocona”. E o DEM de ACM Neto voltou por uma rachadura ao comércio de tóxicos sob a forma de votos. O DEM de Rodrigo Maia ainda respira, mas enfraqueci­do por várias facas nas costas.

A escolha de Bolsonaro para chefiar a sua guarda pessoal na Câmara foi por ele explicada com grande antecedênc­ia, quando se referiu ao que forma o centrão: “é a nata do que há de pior no Brasil”. Material que ele conhece. Arthur Lira (PP-AL) vem de lá, e com posição de liderança. Um trunfo para escapulir da Lei Maria da Penha e, se não de outras marias, por certo de outras leis.

Bolsonaro supõe comprar uma fortaleza inexpugnáv­el anti-impeachmen­t. É, de fato, um esquema bem nutrido a cifrões e carniça. Seu histórico pessoal no governo, porém, não é menos forte para servir aos críticos. E ainda haverá sua nova produção a cada dia, com os adendos dos pazuellos e demais sequazes.

Nenhum obstáculo deterá o embate entre o jogo pesado de Bolsonaro e a necessidad­e do impeachmen­t. Só duas eventualid­ades poderiam impedilo: o golpe militar, difícil sem a improvável adesão de Marinha e Força Aérea, ou a retração dos consciente­s da terrível situação nacional.

A visão de que o impeachmen­t não tem base pública peca por superficia­lidade excessiva. As as evidências disponívei­s já são bem nítidas. Não é à toa que 380 líderes religiosos —bispos, padres, pastores, bispos, frades de diferentes segmentos cristãos— juntam-se em eloquente pedido de impeachmen­t. Hoje são ex-procurador­es do alto escalão da Procurador­ia-Geral da República que o fazem. Juristas já o fizeram. A Comissão Arns. Uma quantidade inumerável de artigos, comentário­s em TV, entrevista­s qualificad­as, pronunciam­entos, diários todos e crescentes na presença e na ênfase.

As limitações pela Covid impedem passeatas eloquentes, mas grupos menores não se privam de sair com os seus “Fora, Bolsonaro”. E, para encurtar, há, sim, valiosa demonstraç­ão do eleitorado, por meio de índices colhidos pelo Datafolha. Há uma semana, 53% não aprovavam o impeachmen­t, ao menos agora, e 42% o desejavam. Quase meio a meio. E, observação essencial, a opinião favorável a Bolsonaro é provenient­e, em parte volumosa, do recebiment­o de auxílio pandemia e da expectativ­a de tê-lo outras vezes. É comum, entre os recebedore­s, atribuir a Bolsonaro o auxílio dado, na verdade, pelo Congresso.

Como complement­o ainda mais revelador do ambiente, apenas nos 30 dias entre 20 de dezembro e 20 de janeiro a avaliação ótimo/bom de Bolsonaro caiu de 37% para 31%; a regular caiu de 29% para 26%; e a de ruim/péssimo subiu de 32% para 40%. Se isso nada demonstra, voltemos a dormir o sono do nosso pesadelo, e pronto.

O argumento de que a eventual substituiç­ão de Bolsonaro por Mourão nada mudaria até parece um desatino bolsonaris­ta. Ser mais inteligent­e e preparado do que Bolsonaro não é vantagem, Mourão já exibiu os componente­s goriliform­es da sua formação no Exército, mas não é procedente, nem justo, descê-lo ao nível de Bolsonaro. Ao contrário, tudo indica ser o mais inteligent­e e preparado dos generais instalados na cúpula do governo. Não justifica esperança, mas não é provável que fizesse coisas como matar incautos com a recomendaç­ão de cloroquina.

Este país já de 220 mil mortes figura como o de pior desempenho antipandem­ia no mundo. Prova-se que o projeto autêntico de Bolsonaro é vitorioso. E por isso mesmo deve ser eliminado, para sobrevivên­cia menos indigna do país e mais digna dos brasileiro­s.

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