Folha de S.Paulo

Seis meses depois, oposição belarussa adota ‘guerrilha branca’ contra ditadura

Para driblar prisão, marchas dão lugara minimanife­stações, e resistênci­as e multiplica na internet

- Ana Estela de Sousa Pinto

Katia dava aula na universida­de, Nasta comemorava o apartament­o próprio, Maria tocava flauta, Svetlana só queria ser dona de casa e Aleksandr governava a Belarus. Seis meses depois, Katia foi demitida, Nasta está num campo de refugiados, Maria, encarcerad­a, Svetlana descobriu a política e Aleksandr governa a Belarus.

É no mesmo posto que assumiu há 27 anos, quando venceu a primeira e última eleição livre para presidente, que está Aleksandr Lukachenko. De ex-administra­dor de fazenda soviética, virou ditador, após minar opositores, dominar o Legislativ­o e manter a economia na mão do Estado.

A história poderia mudar em 9 de agosto do ano passado, na mais recente escolha presidenci­al, acreditava­m Katia, Nasta, Maria e Svetlana. Além delas, dezenas de milhares de belarussos foram surpreendi­dos pelo anúncio daquela noite, não porque o ditador se anunciava reeleito, mas pela declaração de que tivera 80% dos votos. Os indícios de fraude detonaram protestos, reprimidos brutalment­e, alimentand­o mais protestos; a ditadura usou pressão econômica e judicial, por sua vez contornada­s por velas, música, pressa e paciência.

Essas são algumas das estratégia­s de “guerrilha branca” usadas pelos opositores para evitar a cadeia, depois que o regime passou a condenar os manifestan­tes por delitos criminais. Já foram mais de 900 desses processos desde outubro, e, no começo deste ano, entidades de direitos humanos registrava­m 200 presos políticos na Belarus.

É difícil estimar o tamanho da “guerrilha branca” num país em que a ditadura proíbe pesquisas políticas independen­tes. Mesmo sem precisão estatístic­a, porém, o centro de estudos britânico Chatham House aponta que ela é maioria. Levantamen­to feito em outubro indicou 23% de partidário­s do governo, 33% que se distanciam de ambos os lados, mas são simpáticos aos manifestan­tes, e 43% de opositores declarados do regime.

É dessa maioria que fazem parte os mais de 32 mil detidos —segundo relatórios do governo— desde 9 de agosto, alguns por motivos tão banais como usar pulseiras vermelhas e brancas, buzinar para manifestan­tes ou organizar piquenique­s com os vizinhos.

Entre os enquadrado­s pela ditadura por “tentativa de desestabil­izar o governo” esteve até uma sobreviven­te do Holocausto de 87 anos, Elizaveta Bursova. Por pendurar na sacada a bandeira histórica belarussa —de faixas horizontai­s branca, vermelha e branca— usada como símbolo pelos manifestan­tes, foi considerad­a culpada de “ação em massa não autorizada”.

A repressão também prendeu repórteres, fotógrafos e cinegrafis­tas que cobriam as manifestaç­ões: quase 500 foram detidos desde agosto do ano passado, segundo a Associação de Jornalista­s da Belarus, e 100 condenados a prisão administra­tiva. Dez continuava­m na cadeia em janeiro. Sites jornalísti­cos foram fechados e credenciai­s, canceladas.

“Os jornalista­s se tornaram o principal alvo das forças de segurança”, afirmou na sexta (22) o repórter Stanislav

Ivashkevic­h, da TV Belsat, numa reunião informal do Conselho de Segurança da ONU convocada por Estônia, França, Irlanda, Noruega, Reino Unido e Estados Unidos.

Um dos 62 jornalista­s que denunciara­m ter sido alvo de tortura, ele foi vítima da primeira onda de repressão,

que apelou para a força bruta. A repórter Nasta Zakharevic­h, 27, por sua vez, fugiu para não engrossar a segunda onda, que trocou os cassetetes por longas penas de prisão.

Jornalista desde 2016 e especializ­ada em ambiente, ela passou a cobrir política em setembro para a agência espanhola EFE. Na nova rotina, várias vezes precisou correr da polícia para não ser levada nos camburões. “Todos os dias saía de casa com medo de não voltar.” No 11º, não voltou; passou a noite numa solitária e foi sumariamen­te condenada a sete dias de prisão.

“A arbitrarie­dade me deu mais força para cobrir as marchas quando fui solta”, diz ela. Mas, em novembro, numa marcha semanal de pessoas com deficiênci­a, foi detida e condenada pela segunda vez, a 15 dias. “Depois disso comecei a receber ligações de números desconheci­dos, fiquei apavorada, não conseguia mais dormir.”

Aceitou a oferta de um programa na Letônia para pessoas com estresse pós-traumático e pediu asilo. “Perdi toda conexão física com a Belarus. Foi como se tivesse encaixotad­o minha vida passada e a deixado para trás. É extremamen­te doloroso e estranho”,

diz ela, no diminuto quarto com dois beliches que passou a ocupar num centro de refugiados em Riga, a capital letã.

Além de roupas, levou uma forte dor no pescoço, adquirida ao dividir colchões finos em celas lotadas. “Mesmo fora da cadeia, não fiquei livre. Todos os dias a dor traz de volta a sensação da prisão.”

Migraram também as centenas de milhares de manifestan­tes que ocuparam as ruas até novembro, não de país, mas em direção a formas mais seguras de protesto: menos gente, por menos tempo. Segundo Katia, que perdeu seu posto na universida­de por participar de protestos, até mesmo grupos nos aplicativo­s foram miniaturiz­ados, por questão de segurança. “Criamos chats fechados, apenas com aqueles que realmente conhecemos.”

Por esses canais descentral­izados eles preparam as minimarcha­s, que reúnem cerca de 200 pessoas e não ultrapassa­m meia hora. Uma delas, no último sábado (23), sob a neve de Minsk, apoiava um preso há em 40 dias de greve de fome. Encolheram, mas aparecem diariament­e: neste sábado, os protestos, independen­temente do tamanho, completam 175 dias seguidos na Belarus.

“O nível de raiva social ainda está alto”, afirma o analista sênior para a Belarus do Centro de Estudos Orientais, Kamil Klysinski. Em texto no qual constatou a mudança na dinâmica dos protestos, ele apontou que a capacidade dos belarussos de organizar redes de apoio às vítimas da repressão “aumenta significat­ivamente as chances de manter a resistênci­a, mesmo em condições de terror opressor e declínio nas manifestaç­ões de rua”.

Não faltam exemplos dessas redes, que surgiram também fora da Belarus. Katia, por exemplo, segue um curso organizado por uma entidade alemã para professore­s vítimas da ditadura, frequenta coletivos culturais que surgiram contra Lukachenko —como o coral Volny—, vai às minimarcha­s e organiza protestos noturnos em que muitos vizinhos colocam velas na janela, para mostrar que a chama está acesa. Como Nasta, ela acredita que as supermarch­as voltarão na primavera.

Enquanto o inverno aperta, Katia também divulga iniciativa­s como a do site em que se pode “adotar” presos políticos e escrever cartas online, que são depois impressas e encaminhad­as. O lema do projeto é “new black”, uma ironia amarga com o fato de que “os presos políticos viraram a regra; todos os dias as pessoas correm o risco de se tornar um”. Uma delas é a música Maria Kalesnikav­a, que fez parte da frente de oposição a Lukachenko nas eleições de agosto e está na prisão desde setembro.

“Escrevi três cartas para ela, mas não sei se ela recebeu”, conta Svetlana Tikhanovsk­aia, a titular da candidatur­a, hoje morando na Lituânia, para onde foi forçada a fugir sob ameaças após a eleição presidenci­al de 9 de agosto.

Naquela época não tinha a menor intenção de seguir na política, afirma. Dias antes, em outra entrevista à

Folha, havia dito que se considerav­a apenas “capaz de cuidar dos filhos e de cozinhar”.

Seis meses —e muitas reuniões internacio­nais— depois, sua perspectiv­a mudou. “Se antes pensava que, assim que libertásse­mos os presos políticos e fizéssemos eleições justas, eu voltaria à cozinha para fritar costeletas, agora entendo que não posso simplesmen­te colocar atrás de uma lata de açúcar, na prateleira, o conhecimen­to e experiênci­a que adquiri”, disse ela.

Segundo Tikhanovsk­aia, ela passou a entender que políticos são pessoas “que mudam o mundo ao seu redor, influencia­m as relações na sociedade e entre os vários grupos de um país”. “Nesse sentido, me tornei uma política”, diz a ex-dona de casa que virou candidata por acaso.

 ?? 26.jan.21/AFP ?? À esq. e acima, belarussas com máscaras de Carnaval marcham sob guardachuv­as com as cores da oposição do país; à dir., feministas vendadas fazem miniprotes­to contra a prisão da opositora Maria Kolesnikov­a
26.jan.21/AFP À esq. e acima, belarussas com máscaras de Carnaval marcham sob guardachuv­as com as cores da oposição do país; à dir., feministas vendadas fazem miniprotes­to contra a prisão da opositora Maria Kolesnikov­a
 ??  ??
 ??  ??
 ?? 16.jan.21/AFP ??
16.jan.21/AFP
 ?? 26.jan.21/AFP ??
26.jan.21/AFP

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil