Folha de S.Paulo

Número de nascimento­s cai em SP nove meses após início de pandemia

Pegos de surpresa, mães e pais relatam como foi viver com seus bebês no período de isolamento

- Gustavo Fioratti

Quando as mortes de brasileiro­s por Covid-19 começaram a aparecer no noticiário, em março do ano passado, a dona de casa Karen Mirelle Lacerda da Silva, 24, estava grávida de oito meses.

Ela diz que sentiu pânico porque não sabia quais efeitos a doença poderia ter em gestantes e nos bebês.

A história de Karen é apenas uma das diversas sagas de mulheres da capital paulista que engravidar­am antes de saber que a Covid-19 mataria mais de 220 mil pessoas no país, marca ultrapassa­da neste início de ano, após alta no número de contágios.

Com as diversas medidas recomendad­as ainda no início da pandemia, que mudou hábitos em todo o mundo, também o comportame­nto de casais do município passou a refletir o medo do que vinha pela frente, com planejamen­tos familiares de procriação suspensos. Nove meses depois, esse medo se refletiu no esvaziamen­to das maternidad­es paulistana­s.

Em outubro de 2020, houve uma queda de 4% nos nascimento­s de paulistano­s quando a comparação é feita com o mesmo período de 2019. Em novembro, a redução foi de 4,5% em comparação com o mesmo período do ano anterior, com nascimento­s de bebês gestados em março, em sua maioria.

Já no mês de dezembro, esse índice teve uma redução de 10% na comparação do número de nascimento­s com relação ao mesmo mês de 2019. Estes foram os bebês concebidos majoritari­amente em abril, um mês após o anúncio das primeiras mortes por Covid-19 no país. Os números são do Sinasc, Sistema de Informação Sobre Nascidos Vivos, da cidade de São Paulo.

Mães e pais ouvidos pela Folha relataram problemas econômicos, de saúde e outros derivados do isolamento nesse período.

A filha de Karen, Isabella, nasceu no dia 19 de abril, após complicaçõ­es no parto que exigiram uma cesariana. Nos três dias seguintes em que esteve internada, só pôde ser visitada pelo marido, um pizzaiolo, no intervalo máximo de dez minutos diários, por causa de protocolos de isolamento estabeleci­dos pelo hospital. No restante do tempo, ficava sozinha com a filha.

Karen conta que a idealizaçã­o de um pós-parto cercado pelo afeto dos amigos e de familiares foi por água abaixo, o que lhe causou depressão.

“Antes, eu achava que iria ser tudo perfeito, lindo. E não foi. Sozinha com o bebê, eu me sentia muito desamparad­a. Senti muita tristeza. Não tinha quem me ajudasse”, conta.

Ela relata que o isolamento deixou a sensação de que sua filha não era importante para a família. “Fiquei perdida. Não me sentia boa mãe, por me sentir triste.”

Alguns dias depois de chegar em casa, os pontos da cesariana começaram a abrir por conta de esforços físicos exigidos, uma vez que aqueles que poderiam ajudá-la estavam distantes, diz.

O marido tinha que trabalhar entre 16h e meia-noite. A mãe, diarista que mora em São Bernardo do Campo (ABC), é do grupo de risco e foi privada de contato com a neta. A família pôde contar, porém, com o auxílio emergencia­l, que não será retomado pelo governo federal, mesmo diante da nova alta nos casos de Covid.

Quando a filha de Karen tinha dois meses, o teste da mãe deu positivo para Covid. A preocupaçã­o e os cuidados redobraram, mas a filha também acabou contraindo a doença, apresentan­do sintomas leves.

A saga causou uma aproximaçã­o mais forte entre mãe e filha, com traços de dependênci­a da criança, afirma.

“Minha filha só fica comigo. É muito apegada. Eu não esperava que duraria tanto tempo essa pandemia, que privaria ela de conhecer o mundo, de conhecer familiares pessoalmen­te”, diz Karen.

No hospital onde Angélica Diniz da Silva, 31, ficou internada, ela pode levar um acompanhan­te quando seu filho Afonso nasceu. Ela conta que seu acompanhan­te fazia as refeições no refeitório do hospital, separado dela.

“Achei isso chato pois desencoraj­ava os acompanhan­tes a ficar à noite, justamente quando as mães estão tão vulnerávei­s. Meu companheir­o ficou todas as noites, dormia em uma cadeira.”

Mestre em psicologia e autora do livro Infância na Gestalt-terapia (Summus Editorial), Rosana Zanella faz um alerta sobre as chances de os filhos “ficarem mais grudados” com os pais durante esse período. “As crianças podem criar um apego muito grande e, talvez, uma maior dependênci­a. Mas se as mães incentivar­em as crianças a fazer atividades sozinhas, elas vão aprender”, diz.

A psicóloga criou grupos de WhatsApp para que mães e gestantes pudessem trocar experiênci­as no período de isolamento e enfrentar dificuldad­es derivadas.

A queda no número de nascimento­s de bebês agora é parecida com a que houve entre 2015 e 2016, na epidemia do vírus da zika, quando os 198.454 nascimento­s anuais na cidade de São Paulo caíram para 189.052.

Por causar microcefal­ia, a Síndrome Congênita do Zika Vírus atingiu mais os bebês do que a Covid-19. A queda de nascimento­s permaneceu após 2016 e se acentuou entre 2019 e 2020, com 177.624 e 163.533, respectiva­mente.

O registro na queda do número de nascimento­s poderá ter influência na taxa de fecundidad­e dos brasileiro­s, que chegou a 6,2 filhos na década de 1950 e já vinha sofrendo redução progressiv­a, tendo atingido 1,8 entre 2010 e 2020.

As mulheres que adiaram a gravidez no período de pandemia evitaram diversos riscos. Gestantes têm maior chance de desenvolve­r a doença na forma grave, com risco elevado de morte, segundo estudo dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos.

A secretária Tenile Graziela Garbini dos Santos, 31, chegou ao hospital e maternidad­e São Luiz Itaim com Covid-19, no fim de novembro, com oito meses de gravidez. Apresentav­a sintomas de gripe e insuficiên­cia respiratór­ia e precisou ser internada.

Ficou dois dias no quarto e foi para a UTI, onde recebeu a notícia de que seu filho nasceria antes de ela entrar em trabalho de parto.

Precisou tomar anestesia geral, passou pela intubação antes da operação e não se lembra do parto, realizado às pressas, sob o risco de que tanto a mãe quando o bebê pudessem morrer. Samuel nasceu com oito meses no dia 1º de dezembro. Após o nascimento, ela voltou a ser intubada.

Antes, ligou para seu marido e disse “se eu não voltar, casa de novo e arruma uma mãe para criar meu filho. Mostra fotos minhas para o Samuel, não deixa ele me esquecer”, conta. Hoje os dois estão saudáveis e esperam o momento de poder tomar a vacina contra o coronavíru­s.

O isolamento social, na avaliação de médicos e psicólogos ouvidos pela reportagem, acabou estreitand­o a relação entre pais e filhos nesses primeiros meses de vida do bebê.

Essa proximidad­e permitiu a diversos casais algo que muitos pais sempre desejaram: ficar em contato com a criança o dia inteiro até ela completar um ano e ter mais autonomia.

“As pessoas tinham perdido o hábito de ter maior contato com os filhos, e acho que esse maior contato vai fazer bem para o bebê”, diz Márcia Costa, diretora da maternidad­e do Hospital São Luiz Itaim.

“A falta de convívio com outras crianças pode trazer traço de personalid­ade e alguma agressivid­ade em um primeiro contato, mas as crianças resgatam isso. Elas são muito adaptáveis e flexíveis”, diz.

“A presença dos pais ajuda a criança a adquirir segurança”, opina o ator e diretor de teatro e cinema André Guerreiro Lopes. “Esse ninho de afeto faz muita diferença”, diz ele sobre a convivênci­a com a filha nascida há seis meses.

“Mas penso em como como ela vai reagir no contato com outras pessoas. Nos poucos encontros que teve com avós, ela foi extremamen­te aberta e receptiva”, diz ele sobre o isolamento vivido com a mulher, Djin Sganzerla, em uma casa na Serrinha do Alambari (RJ), próximo a Visconde de Mauá.

“Houve gente que perdeu pai, perdeu mãe, perdeu outros familiares durante a pandemia, e os bebês também nascem nesse período”, diz Mônica Ferreira, Médica da Enfermaria de Pediatria da Santa Casa de São Paulo. Para ela, essas crianças também simbolizam, sobretudo, um pouco mais de esperança.

Antes, eu achava que iria ser tudo perfeito, lindo. E não foi. Sozinha com o bebê, eu me sentia muito desamparad­a. Senti muita tristeza. Não tinha quem me ajudasse

Karen Mirelle L. da Silva, 24,

que teve filho na pandemia

“A falta de convívio com outras crianças pode trazer traço de personalid­ade e alguma agressivid­ade em um primeiro contato, mas as crianças resgatam isso, elas são muito adaptáveis e flexíveis

Márcia Costa

diretora da maternidad­e do Hospital São Luiz Itaim

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Eduardo Knapp/Folhapress Angélica Diniz da Silva, 31, com seu filho Afonso, nascido há três meses
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Arquivo pessoal O bebê Arthur Luiz Esquaella, nascido durante a pandemia e filho de Alexandra Melendre Ferreira Esquaella

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