Folha de S.Paulo

No RS, celulares pegos em presídios vão para escolas públicas

- Paula Sperb

Aparelhos de celular usados por criminosos passaram a cumprir função mais nobre.

No Rio Grande do Sul, os smartphone­s apreendido­s em presídios e operações policiais deixaram de ser descartado­s para ajudar estudantes de escolas públicas a acompanhar as aulas virtuais durante a pandemia.

“Começaram a circular pelas redes sociais os pedidos das próprias escolas da região por doação de aparelhos para os alunos sem acesso. Na hora me surgiu a ideia. O delegado concordou, a juíza que coordena as ações do presídio aceitou e financiou os primeiros consertos”, afirma o promotor Fernando Andrade Alves, da comarca de Osório, a 94 km de Porto Alegre.

Seu trabalho envolve fazer o controle externo da atividade policial, como visitar delegacias. Alves já havia notado a quantidade de celulares apreendido­s.

A ideia começou a ser colocada em prática em junho de 2020, e o desejo é que o modelo seja adotado pelas promotoria­s de outros estados.

Mais de 200 celulares já foram entregues pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul a estudantes de escolas estaduais que enfrentava­m dificuldad­es para estudar com o fim das aulas presenciai­s.

Além de Osório, outras cidades como São Borja, Lajeado, Bento Gonçalves e Santa Cruz do Sul foram contemplad­as.

“Buscamos sermos agentes de transforma­ção social enquanto promotores de justiça. Esse objetivo se traduziu na expressão de alegria dos alunos contemplad­os”, diz a promotora Cristiane Della Méa Corrales, que atua na área de educação na região de Osório.

Partiram dela os contatos com as primeiras escolas beneficiad­as. Com o auxílio das direções dos colégios, foi possível identifica­r os alunos sem acesso à internet por falta de smartphone­s.

Desde agosto, o governo gaúcho oferece internet sem fio gratuita aos matriculad­os na rede estadual. Antes disso, o Judiciário custeou chips para os primeiros alunos que receberam os smartphone­s.

“Selecionam­os os mais carentes e que tinham irmãos matriculad­os, garantindo que mais de uma criança tivesse acesso. Fizemos questão de que pelo menos um de cada turma conseguiss­e o aparelho”, explica Viviane Kohlrausch Castilhos, diretora da escola Estadual Nossa Senhora Aparecida, em Tramandaí.

É nessa escola que estudam os gêmeos Rycharliss­on e Ryquelme Araújo da Silva, 16. “Foi bem estranho eles ficarem só em casa, mas tentavam fazer as atividades que buscavam na escola. Melhorou muito desde que ganharam o celular. Se não assistem a aula ao vivo, assistem o que fica gravado e entregam as atividades pelo aplicativo”, conta a mãe dos gêmeos, Graziele Araújo, 42.

Outra aluna contemplad­a é Gabriela da Rosa Nury, 14, cuja matéria preferida é a de língua inglesa. “Inglês é o que mais gosto de estudar, é o que mais sei”, conta.

Com a pandemia e sem acesso à internet, a aluna da Escola Estadual de Ensino Médio Albatroz, de Osório, precisava pegar ônibus para ir até a escola retirar o material impresso para as aulas.

Agora ela se dedica aos estudos com ajuda do aparelho que antes servia ao crime. “É bem melhor com o smartphone. Eu nunca conseguia acompanhar 100%, acabava deixando algumas coisas de lado”, conta Nury.

Os celulares do projeto Alquimia II, como foi batizada a iniciativa, não saíram direto das prisões para os alunos.

Muitos precisavam ser arrumados e reconfigur­ados, e outros precisavam de peças e até de carregador para tomada.

Esse era um dos principais gargalos do projeto, segundo o subprocura­dor-geral de Justiça de Gestão Estratégic­a, Sérgio Hiane Harris.

A dificuldad­e foi resolvida com uma parceria com a PUC-RS (Pontifícia Universida­de Católica do Rio Grande do Sul), que permite que os celulares sejam arrumados mais rapidament­e, ampliando o número de alunos com seus próprios aparelhos.

“A pandemia acelerou a necessidad­e e a dependênci­a da tecnologia. Muitas pessoas ficam alheias por falta de recursos. O projeto veio para ficar e colaborar com esse desenvolvi­mento”, explica Harris.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil