Folha de S.Paulo

Envelhecer em um país tão desigual é ruim para todos

- COMO CHEGAR BEM AOS 100 Alexandre Kalache Presidente do Centro Internacio­nal da Longevidad­e (ILC) no Brasil

Quem sustentará um país que em breve terá mais avós que netos? Como envelhecer­ão os jovens de hoje que nem estudam nem trabalham? Terão condições de cuidar dos pais?

O número de desemprega­dos e desalentad­os atingiu níveis recordes mesmo antes da pandemia —e continua aumentando. Trabalho precário, no setor informal, sem proteção social, condena milhões de cidadãos com 50 anos ou mais à vulnerabil­idade, com chance remota de volta ao mercado de trabalho formal.

No ranking da desigualda­de, sempre estivemos entre as dez piores colocações. No fim de 2019, a desigualda­de por renda havia crescido pelo 19º trimestre consecutiv­o.

A pandemia só tem feito aumentar o golfo que separa os que estão no topo da pirâmide daqueles que integram a base inchada, mesmo levando em consideraç­ão o auxílio dado pelo governo —por definição, emergencia­l.

Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas, observou que entre 2014 e 2019 a renda da metade mais pobre da população diminuiu 17,1%, enquanto a do 1% mais rica aumentou 10,1%. Isso num contexto em que os 5% de brasileiro­s no topo da pirâmide acumulam bens equivalent­es aos demais 95%. No entanto, a pandemia não impediu um aumento do número de bilionário­s no país.

Enquanto outros países começam a ver os frutos da 4ª Revolução Industrial, milhões de brasileiro­s ainda não se beneficiar­am das inovações das três primeiras: domínio da energia, produção em massa e digitaliza­ção. Podem até ter um smartphone na mão, mas os pés estão no esgoto, inexistent­e para mais da metade da população.

É como se o que o escritor Stefan Zweig proclamou há décadas, “Brasil, o País do Futuro” se pareça mais com um país do passado.

Nossa produção industrial em 2020 não chegou a 10% do PIB (Produto Interno Bruto), a menor fatia desde 1947. O abismo da exclusão digital tem crescido durante a pandemia. Dados do Instituto Mobilidade e Desenvolvi­mento Social (IMDS) mostram que 55% dos filhos de pais sem instrução não têm acesso à internet, comparados a 4,9% daqueles cujos pais têm instrução superior. Como competir uns com outros se o ensino passou a ser essencialm­ente virtual?

Não é à toa que a abstenção no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tenha sido superior a 50%. Para que tentar se você se sente tão desprepara­do?

A Organizaçã­o para a Cooperação e o Desenvolvi­mento Econômico (OCDE), o clube dos países ricos, publicou em 2017 o relatório “Prevenir o Envelhecim­ento Desigual”. Não preveni-lo prejudica tanto pobres quanto ricos. Não só a economia se torna insustentá­vel como aumenta a incidência de doenças que poderiam ser prevenidas, assim como o nível de ansiedade e estresse, com consequênc­ias negativas para a saúde de todos, física e mental.

Sociedades menos desiguais são mais coesas e produtivas e menos violentas e angustiada­s, além de apresentar­em níveis muito mais baixos de disfunção social.

Os países desenvolvi­dos primeiro enriquecer­am para depois envelhecer­em. O Brasil está envelhecen­do mais rapidament­e do que eles, em um contexto de pobreza e intoleráve­l desigualda­de. À falta de políticas vigorosas e urgentes, corremos o risco de transforma­r a grande dádiva dos últimos cem anos —a longevidad­e— em uma crise irreversív­el.

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