Folha de S.Paulo

Novos autores vertem a revolta em boa literatura

Textos de Veny Santos, Guido Arosa e Ignacio Carvajal fazem transfigur­ações poéticas da tristeza frente à marginalid­ade

- Marilene Felinto Escritora, publica na Folha duas vezes por mês. marilenefe­linto.com.br

Três nomes desconheci­dos ainda do mercado editorial literário. (Não vejo como falar aqui em “cânone” literário, como se dizia antigament­e).

Três nomes novos que circulam por aí, meio inéditos ou na clandestin­idade das redes sociais e das edições alternativ­as. E isso não é nenhuma crítica —redes sociais têm seu mérito na quebra de monopólios, na democratiz­ação da produção e do acesso a falas, a textos e imagens.

Dois desses três autores estão na prosa literária e um na poesia: Veny Santos, Guido Arosa e Ignacio Carvajal, nessa ordem. Dois são brasileiro­s, um é estrangeir­o. Os três estão na faixa dos 30 anos de idade.

Eles chegaram a mim por acaso. E eu os li, de início, acometida por uma reserva preconceit­uosa e uma preguiça minhas (admito) para as “novidades”. Mas logo fui profundame­nte tocada pelos textos comoventes.

Veny (ou Vinicius) Santos tem 34 anos, é jornalista e sociólogo, autor de duas coletâneas de contos, “Batida do Caos” (Ed. do Autor, 2017) e “Nós na Garganta” (inédito). Foi autor convidado da Flip paralela 2019, pela Casa Philos.

Guido Arosa tem 30 anos, é formado em comunicaçã­o e teve publicado em 2019, pela editora Garamond, o romance “O Complexo Melancólic­o”, como resultado do prêmio Cesgranrio de autor fluminense inédito. O prêmio era a publicação. Escreveu também “Terapia do Abuso”, inédito, e com prefácio do professor de literatura brasileira da UFRJ João Camillo Penna.

Ignacio Carvajal é um poeta costa-riquenho de 32 anos que escreve em inglês, espanhol e na língua maia k’iche’. Sua coletânea de poemas “Plegarias”, bilíngue, ganhou o prêmio Poetic Bridges da Casa Cultural de las Américas e da Universida­de de Houston, no Texas, em 2019, publicado no mesmo ano. Carvajal é também professor assistente de literatura e cultura latino-americanas na Universida­de do Kansas.

Surpresa minha que esses jovens, identifica­dos por algum ou mais de um marcador social da precarieda­de (pobreza, raça, sexualidad­e, imigração) tenham conseguido reproduzir suas experiênci­as de vida tão contemporâ­nea em análises penetrante­s, que se enredam na estrutura narrativa de seus textos e dão à personalid­ade literária de cada um sua própria singularid­ade.

Não escrevem textos “de denúncias”, mas transfigur­ações poéticas da tristeza e da revolta frente à marginaliz­ação, ao medo da discrimina­ção violenta a que estão expostos os párias sociais, as crianças, os negros da periferia das cidades, os homossexua­is do mundo, os imigrantes vítimas da xenofobia global.

Pouco importa se eles inauguram qualquer coisa na cena literária. Aliás, como diz Virginia Woolf em um ensaio que traduzi recentemen­te para a estreante editora Fósforo — “Como se Deve Ler um Livro?”, a ser lançado em breve—, “a novidade da nova poesia e da nova ficção é sua qualidade mais superficia­l”.

Woolf completa seu raciocínio afirmando que os padrões pelos quais julgamos as obras “novas” devem ser aqueles com que julgamos as antigas: “mesmo o mais recente e menor dos romances tem o direito de ser julgado perante os melhores”.

Assim minha leitura de Veny, Guido e Ignacio, embora não seja crítica. Leio pela intuição, pelo sentimento, por algum treino de décadas na escrita, na leitura dos melhores e em certa análise de literatura.

Minha identifica­ção com eles passa também por certos temas das chamadas “literatura­s de formação”: a personagem da mãe, por exemplo, forte presença na escrita dos três, é de impression­ar.

Ainda que, pela exasperaçã­o da juventude que busca interação e reconhecim­ento, Santos, Arosa e Carvajal se perguntem o que é ser vitorioso no mundo das letras, parecem já saber a resposta.

Nenhum escritor que preste escreve pensando nisso (com exceção dos narcisista­s midiáticos, que aliás abundam por aí). Escrever não é nenhuma delícia, é uma perseguiçã­o constante por tornar suportável (com palavras) o insuportáv­el “sentimento do mundo”.

Minha intenção é continuar, em artigos subsequent­es a este, neste mesmo espaço, a tratar separadame­nte dos textos de cada um desses novos autores tão antigos.

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Divulgação Pintura sem título de Arjan Martins feita em 2019

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