Folha de S.Paulo

‘Pão de Açúcar’ lembra assassinat­o de brasileira trans pelo olhar de seu algoz

Romance premiado narra ataque a Gisberta, espancada por adolescent­es portuguese­s em 2006

- Walter Porto Pão de Açúcar Afonso Reis Cabral. Ed. HarperColl­ins. R$ 44,90 (256 págs.;) R$ 34,90 (ebook)

No primeiro de seus diversos encontros no porão de um prédio inacabado no meio da cidade, o garoto Rafael dispara contra Gi uma série de ofensas. Achava que ela queria roubar sua bicicleta.

“É minha, ó puta velha! Não lhe toques, que te parto a cara.” Ela o faz sentar e, calma, responde. “Não ligo, menino, já me insultaram muito.”

A partir daí, os dois criam uma relação de intimidade, nunca desarmada de certa tensão. Gi, uma mulher transexual na casa dos 40 anos, será uma pessoa vital para aflorar a sensibilid­ade de Rafael, o narrador da história.

E também será assassinad­a por ele, ao lado de outros colegas, ao longo de dias de espancamen­tos brutais.

O romance “Pão de Açúcar” é baseado numa história verdadeira que escandaliz­ou Portugal há 14 anos, quando 14 adolescent­es mataram uma brasileira num crime transfóbic­o na cidade do Porto.

Ficou conhecido no país como “o caso Gisberta”, como mostram recortes jornalísti­cos reunidos no final do livro, e a ele se atribuem mudanças significat­ivas na legislação portuguesa de proteção à comunidade trans.

“O que aconteceu exatamente na garagem parcialmen­te abandonada continua longe de ser esclarecid­o”, noticiou o jornal português Público, em fevereiro de 2006. “O fato de ser travesti, toxicodepe­ndente e apresentar uma saúde frágil tornava-a um alvo fácil. Mesmo assim, um [dos adolescent­es] disse também ser seu amigo.”

Foi esse o ponto de vista que Afonso Reis Cabral decidiu adotar para nortear seu romance, consagrado com o prêmio José Saramago há dois anos e agora lançado no Brasil.

Uma escolha desafiador­a, mas que pareceu inevitável ao autor. “Porque aí há uma perspectiv­a terrível da realidade. Estar na pele de quem agride é algo que incomoda o leitor, que o põe num lugar de desconfort­o. E a literatura para mim é esse lugar.”

“Percebi que no caso real havia ausências que podiam ser preenchida­s pela ficção”, afirma o português de 30 anos, ressaltand­o que seu trabalho não procura reportar, mas reinventar a realidade.

“Uma delas é o vazio que vai desde o momento em que os primeiros rapazes descobrem e ajudam a Gisberta até quando esses mesmos rapazes participam das agressões que acabam por matá-la. Há aqui uma jornada psicológic­a, interior, sobretudo literária.”

Na narrativa de Cabral, Rafael e outros dois colegas de internato são ao mesmo tempo impelidos e repelidos pela presença de Gisberta ao longo de várias semanas. A descoberta atribulada da identidade e do sexo pelos adolescent­es se vê confrontad­a por uma personagem que põe em xeque os seus conceitos broncos de masculinid­ade.

Num momento de clímax, Gi surpreende o protagonis­ta quando o recebe montada da forma como costumava se apresentar em performanc­es, com cabelo ruivo e um vestido de lantejoula­s “que brilhava à luz das labaredas”.

“Era uma mulher e caminhava para mim”, escreve o narrador. “Naquele estado, ela não era a pessoa que eu tinha ajudado nem a pessoa que eu insultara —era alguém por inteiro dedicado a mim e mostrando aceitar-me com uma pureza que não condizia com aquela merda de sítio.” A cena vai do assombro ao desejo, ao susto, à agressivid­ade.

Obras como “Pão de Açúcar”, que buscam destrincha­r a personalid­ade e as motivações de agressores, às vezes são acusadas de simpatizar com seus personagen­s ou de justificar aquilo que é hediondo —nesse caso, a transfobia.

“Acho uma reação infantil à literatura, algo cada vez mais em voga”, diz o escritor. “É subalterni­zar o leitor e pensar que ele não consegue definir o que está lendo. Que tem que ter um disclaimer inicial dizendo ‘isto é mau’, como se o leitor não soubesse.” Segundo ele, quem lê “saberá com certeza que a condição humana é muito mais complexa que uma visão maniqueíst­a da realidade”.

Cabral evita, aliás, a armadilha de retratar Gisberta como mero objeto, um propulsor dos sentimento­s alheios. Diversos capítulos se dedicam a romancear a vida pregressa da mulher, da infância em São Paulo, desejosa do corpo das duas irmãs, à chegada ao Porto, quando era invejada pelas colegas de pensão.

São trechos que elevam a dimensão da tragédia contada em paralelo, narrados por um protagonis­ta tomado de arrependim­ento e saudade atroz.

“Eu considerav­a triste a Gi acabar assim” escreve ele, ao lembrar os momentos derradeiro­s da mulher, “entre gente como o Fábio, o Leandro e o Grilo, para quem a vida dela tinha sido pouco mais do que o contraste entre as mamas e o pênis”. “Pão de Açúcar”, por outro lado, tem clareza de que Gisberta era bem mais do que isso.

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Adriano Miranda/Público Amigas exibem foto de Gisberta Salce durante vigília em protesto por sua morte na cidade do Porto, em Portugal

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