Folha de S.Paulo

O grande responsáve­l

Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

A explicação é que não há como explicar.

A formação em ciência exige humildade para analisar opiniões e ideias opostas às nossas, o contraditó­rio é parte intrínseca do pensamento científico. Não fosse assim, até hoje acharíamos que a Terra é plana e que o Sol foi criado para girar em torno dela.

Em janeiro do ano passado, quando o novo coronavíru­s atormentav­a apenas os chineses, tive a impressão de que os casos de maior gravidade ficariam restritos aos mais velhos. Para boa parte dos especialis­tas a doença teria mortalidad­e semelhante à das gripes.

Hoje, eu me penitencio por ter feito essa avaliação apressada. Lembrar que ela foi influencia­da por uma palestra do doutor Anthony Fauci, uma das maiores autoridade­s em moléstias infecciosa­s dos Estados Unidos, não me consola.

Foi em fevereiro, quando a doença semeou o terror nas UTIs da Itália, que o mundo entendeu a gravidade da ameaça. Imediatame­nte, os países adotaram medidas rígidas para reduzir a movimentaç­ão nas cidades e insistiram na necessidad­e do uso de máscaras protetoras.

No Brasil, o presidente da República contraindi­cou com veemência essas recomendaç­ões. O argumento foi o de que elas destruiria­m a economia e matariam de fome um número maior de brasileiro­s, do que a doença seria capaz de fazê-lo.

Achei que ele estava errado. Primeiro, porque não havia dados para estimar o impacto de uma improvável epidemia de fome na mortalidad­e da população; depois, porque a história das epidemias nos mostra serem elas as responsáve­is pelas repercussõ­es negativas na economia, não o isolamento social. Enquanto circula um agente infeccioso potencialm­ente letal, é impossível convencer as pessoas a gastar dinheiro para estimular o cresciment­o econômico.

Considerei, no entanto, a possibilid­ade de que o empenho presidenci­al na defesa de estratégia­s para manter os empregos pudesse ter alguma lógica, hipótese abandonada quando o vi pela primeira vez sem máscara promovendo aglomeraçõ­es, para delírio de apoiadores fanáticos. Se estivesse interessad­o em proteger a economia, de fato, qual o sentido de incentivar a adoção de comportame­ntos que disseminam o vírus? Por que razão não diria aos brasileiro­s: saiam de casa para trabalhar, mas usem máscara e evitem aglomeraçõ­es?

Para enfrentar o medo de contrair o vírus repetiu à exaustão que não deveríamos acreditar nas “conversinh­as” dos jornalista­s, que a doença só matava os “bundões”, que deixássemo­s de ser “maricas” e que contávamos com a cloroquina, remédio milagroso quando administra­do nas fases iniciais da doença. Não faltaram médicos que não têm o hábito de estudar ou formação científica suficiente para avaliar a qualidade dos trabalhos publicados, para lhe dar razão e preconizar a distribuiç­ão do inacreditá­vel kit Covid.

A queda de dois ministros da Saúde que se negaram a adotar a cloroquina como política de combate à epidemia não bastou para evitar que a farmácia do Exército fosse obrigada a investir recursos preciosos na importação da droga, a preços inflaciona­dos. A cegueira foi de tal ordem que deixamos o ex-presidente dos Estados Unidos desovar aqui os milhões de comprimido­s encalhados que os médicos americanos se recusaram a prescrever, para não correr o risco de processos por más práticas.

Quando o mundo entendeu que estávamos próximos da obtenção das primeiras vacinas e os países iniciaram a corrida para comprá-las, o Brasil não estava entre eles.

Pelo contrário, o presidente se empenhou em afirmar que não seria vacinado, que ninguém era obrigado a fazê-lo contra a vontade e que os efeitos colaterais poderiam ser “terríveis”. Contra a visão dos economista­s —inclusive a de seu ministro— de que a vacinação é a única forma de reativar a economia, insistiu em boicotar a imunização em massa com argumentos de fazer inveja aos grupos antivacina mais ignorantes.

Esse boicote sistemátic­o justifica mais de 220 mil óbitos? Ele é o único culpado? É claro que não, a culpa é de muitos, especialme­nte dos egoístas estúpidos que se aglomeram sem máscara nos bares e nas festas. No entanto, pela natureza do cargo que ocupa, os absurdos que fala e a indignidad­e dos exemplos que dá, o presidente da República tem sido o grande responsáve­l pela disseminaç­ão da epidemia. Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes.

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