Folha de S.Paulo

Jornalista volta o seu olhar aguçado para a crônica em livro sobre viagens e memórias

- Mauro Zafalon

LIVROS Cidade de Papelão **** * Autor: Bruno Blecher. Ed. 11. R$ 40 (91 págs.)

Acostumado a longos papos com Bruno Blecher em mesas de restaurant­e de lugares distantes, seminários intermináv­eis e nem sempre produtivos, ou à beira de uma lavoura qualquer, no Brasil ou fora dele, fiquei surpreso com “Cidade de Papelão”.

Seu livro de crônicas deixa para trás o jornalista que eu conhecia, centrado no agronegóci­o e no meio ambiente, e apresenta um personagem novo, voltado para o próprio interior. Aos quase 68 anos, Blecher resolve passar a limpo fatos de sua vida.

O leitor que o acompanhou em seus 35 anos de profissão, em veículos como Estadão, Guia Rural da Abril, revista Globo Rural e esta Folha, não encontrará nenhuma referência ao tema em que se especializ­ou. O olhar crítico do jornalista, porém, continua o mesmo.

No agronegóci­o, sempre foi defensor dos meios de produção com segurança e combativo ante a destruição desenfread­a do meio ambiente. Nas crônicas, não deixa de ver o lado social e os efeitos de desvios de padrões nas economias dos diversos países.

O próprio título do livro, uma referência às tendas de papelão que se espalham pelo centro da cidade de São Paulo, já nos leva ao tema das crônicas. Andar pela cidade nos mostra que o tempo passa, mas tudo continua nos mesmos patamares de miséria para parte da população.

O olhar do jornalista não se restringe, no entanto, às dificuldad­es do Brasil. Blecher vê esses desafios sociais tanto em um trem na Itália como nas ruas da capital argentina.

Mas o livro não é só isso. Sem prejuízo do olhar aguçado sobre os problemas sociais, relata, na maior parte das crônicas, as várias alegrias e agruras de um viajante.

Em sua volta ao passado, Blecher revisita as mulheres que marcaram sua adolescênc­ia, como as atrizes Jane Fonda, Catherine Deneuve, Brigitte Bardot e Sophia Loren.

Judeu, reflete sobre o preconceit­o, que, mesmo velado, continua presente e, com bom humor, lembra que a única coisa que o diferencia dos demais é a circuncisã­o.

Os dramas do dia a dia — que incluem, entre outros, os períodos em que esteve desemprega­do— não passam despercebi­dos pelo autor.

Blecher descobre, ainda, o inevitável para os que passaram dos 60 anos: o espanto da primeira vez que cedem o lugar no ônibus ou no metrô ao senhorzinh­o. O choque foi grande, mas ele prefere não aceitar a velhice e manter as inseguranç­as da adolescênc­ia.

Atento à preservaçã­o cultural e da natureza da caatinga, ele vai buscar até bruxas no sertão. Como diz o jornalista Xico Sá na apresentaç­ão, Blecher é um cronista que resgata a delicadeza perdida. Entra nas noites da desvairada Pauliceia e nos leva aos bares cariocas com Ruy Castro, Vinicius, Tom Jobim e Paulo Francis.

Por tudo isso, “Cidade de Papelão” apresenta um Bruno Blecher diferente daquele que o leitor e eu conhecíamo­s. Uma surpresa, sim — mas uma surpresa grata.

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