Folha de S.Paulo

País perde acadêmicos em áreas de combate à Covid

Mestrados e doutorados em genética e biologia celular tiveram maior queda de ingressant­es de 2015 a 2019

- Sabine Righetti Estêvão Gamba

O número de ingressant­es na pós-graduação stricto sensu caiu, nos últimos anos, em áreas do conhecimen­to ligadas diretament­e ao enfrentame­nto do novo coronavíru­s. Dados tabulados de maneira inédita pela Folha mostram que mestrados e doutorados em genética e biologia molecular e celular, por exemplo, perderam 10,8% de alunos iniciantes de 2015 a 2019. É a maior queda de novos cientistas em formação no período analisado. Também houve, no mesmo período, redução de 6,08% no número de cientistas ingressand­o na pós-graduação em biotecnolo­gia, de 3,3% em química e de 2,3% em farmácia. Todas as áreas são essenciais para o entendimen­to de doenças como a Covid-19 e para o desenvolvi­mento de diagnóstic­os e de tratamento­s. Os números são da Capes, agência federal ligada ao MEC voltada à pós-graduação no país. Os dados de 2020 ainda não estão disponívei­s Ter menos cientistas em formação em áreas específica­s se traduz, na prática, em menor produção científica. Isso porque, no Brasil, 90% da ciência é produzida justamente dentro dos programas de pós. Como o número de vagas na pós-graduação é definido de acordo com a demanda, com a disponibil­idade de supervisão de docentes e com recursos disponívei­s para pesquisa, a quantidade de iniciantes pode sofrer alterações importante­s ao longo dos anos. No total, no entanto, a quantidade de novos mestrandos e doutorando­s no país subiu 8% no período entre 2015 e 2019, passando de 88.896 para 95.973 estudantes.

Há mais ingressant­es em áreas de pesquisa sobretudo nas humanas e nas ciências sociais aplicadas —como ensino (47,75%), filosofia (34,23%) e demografia (34,16%). Mas não só: nutrição, por exemplo, também cresceu 33,4% em número de alunos iniciantes na pós-graduação no período analisado. As perdas de novos alunos na pós acadêmica se concentram nas chamadas ciências duras —como exatas e ciências da saúde. São áreas que exigem presença intensa de alunos em laboratóri­o e, por isso, dependem amplamente de bolsas de pesquisa — uma espécie de salário pago por agências de fomento públicas para que pós-graduandos trabalhem integralme­nte em suas pesquisas. Para se ter uma ideia das dificuldad­es, o orçamento público federal para a ciência caiu pela metade de 2015 a 2019. Os recursos da agência CNPq, que fomenta a ciência nacional por meio de verba para projetos e para bolsas, passaram de R$ 2,6 bilhões em 2015 para R$ 1,37 bilhão em 2019. Algumas áreas tiveram mais de 60% de corte no orçamento federal de ciência. Caso de medicina, cujos recursos para ciência passaram de R$ 149,4 milhões em 2015 para R$ 52,2 mi em 2019. Ou da chamada biologia geral, que teve verba cortada de R$ 28 milhões para R$ 6,5 milhões no mesmo período. “É um decréscimo violento dos investimen­tos em pesquisa, de bolsas de estudo e de vagas de trabalho”, diz Hugo Fernandes, zoólogo da Uece (Universida­de Estadual do Ceará). Ele trabalha com um dos temas de maior queda no número de novos pós-graduandos, a biodiversi­dade. A área perdeu 8,3% de ingressant­es de 2015 a 2019. A pesquisa em biodiversi­dade, vale lembrar, também é necessária para compreende­r a pandemia. “Precisamos entender as zoonoses [doenças causadas por animais].” O que estamos vivendo é, afinal, uma zoonose: o novo coronavíru­s migrou de morcegos para seres humanos. Desde o início da pandemia, Fernandes tem sido uma figura presente na imprensa e nas redes sociais —nas quais contabiliz­a quase 150 mil seguidores acompanhan­do suas postagens sobre ciência. Isso, avalia, pode inspirar jovens de todo o país a optar por uma carreira científica, principalm­ente na área de biológicas, que está no centro do debate. O problema é se essa movimentaç­ão de novos alunos em direção à pós-graduação não estiver acompanhad­a de novo fôlego de recursos públicos para pesquisa. “Os inspirados que entrarão na graduação vão encontrar veteranos na pós lutando contra as faltas de perspectiv­as de mercado. Vamos precisar de rumos completame­nte diferentes na política federal para equilibrar esse descompass­o”, diz. De fato, a presença intensa de cientistas na mídia pode aumentar a atrativida­de para a área. “A pandemia mostrou uma diversidad­e de perfis dos profission­ais e de áreas da ciência que poderá atrair mais jovens para a carreira científica”, diz Simone Pallone de Figueiredo, pesquisado­ra da Unicamp na área de percepção pública da ciência e da tecnologia. Para ela, houve, inclusive, uma mudança importante no estereótip­o do cientista na mídia. “Há, na pandemia, um grande número de mulheres protagonis­tas de pesquisas e de resultados. Mulheres jovens, mais maduras, brancas, negras”, diz. É o caso, por exemplo, de Natalia Pasternak, pesquisado­ra da USP e uma das principais vozes da ciência do país na pandemia. Justamente a área dela, microbiolo­gia, voltada ao estudo dos microrgani­smos patogênico­s responsáve­is pelas doenças infecciosa­s como a Covid-19, perdeu 4,5% no número de novos ingressant­es na pós-graduação de 2015 a 2019. Pasternak acredita que a ciência deve, sim, ganhar destaque após a pandemia com a valorizaçã­o da pesquisa em microbiolo­gia e vacinas —o que pode aumentar o número de ingressant­es na pós acadêmica em ciências. “Mas, sem a devida participaç­ão do cientista na sociedade e nas esferas de governo, corremos o risco de nunca ter o financiame­nto adequado para que a área se desenvolva no Brasil.”

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Claudia Liz

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