Folha de S.Paulo

Em meio a confusão de conceitos, STF julga direito ao esquecimen­to

Julgamento previsto para quarta (3) se refere a episódio de programa de TV sobre crime dos anos 1950

- Renata Galf

Em sua primeira sessão de 2021 nesta próxima quarta-feira (3), o STF (Supremo Tribunal Federal) tratará do chamado direito ao esquecimen­to. O julgamento é visto com atenção por parte da sociedade porque pode ter impactos negativos para a liberdade de expressão.

E justamente a primeira questão que caberá ao tribunal responder é se o direito ao esquecimen­to existiria no Brasil.

Em linhas gerais, entre os que defendem esse ponto, ele seria o direito de que uma pessoa não tenha exposto ao público indefinida­mente um fato ocorrido em determinad­o momento de sua vida, como nos buscadores da internet, por exemplo.

Há, no entanto, muita divergênci­a entre especialis­tas, não só se o direito ao esquecimen­to deveria existir, mas também em relação ao o que estaria abarcado pelo conceito do direito ao esquecimen­to.

Uma das avaliações é a de que o termo tem servido como um guarda-chuva que inclui situações muito distintas. Apesar de o conceito não constar na legislação brasileira, ele já foi reconhecid­o em diferentes ações judiciais no país, inclusive em algumas decisões do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Do mesmo modo que há quem entenda que é possível reconhecer o direito ao esquecimen­to a partir da legislação que já existe hoje —pois ele seria uma ponderação de valores do direito à informação em contraposi­ção à intimidade e à privacidad­e—, há quem entenda que isso só seria possível a partir de uma lei específica.

Paulo Rená da Silva Santarém, professor do UniCeuB e integrante da Coalizão Direitos na Rede, entende que reconhecer o direito ao esquecimen­to por meio de uma decisão judicial poderia ter um efeito negativo.

“Nós não temos no Brasil uma norma, uma lei vigente que assegure qualquer tipo de direito ao esquecimen­to. Nessa medida, essa construção por meio de uma decisão judicial seria muito ruim, porque ela deixaria tudo muito em aberto. E aí teríamos uma situação que podemos chamar de insegura, porque as pessoas não saberiam extrapolar essa decisão para uma outra situação.”

Uma das complexida­des do temaéjust amente que, coma amplitude do termo, as ações que chegam ao Judiciário invocando tal direito são extremamen­te variadas, indo desde a correção, remoção ou alteração de uma informação, até censura à menção de determinad­a pessoa ou então solicitand­o a desindexaç­ão em ferramenta­s de busca na internet —o que faz com que certos resultados deixem de ser mostrados.

Com isso, decidir que esse direito existiria sem definir um conceito com critérios claros para analisar situações concretas poderia acabar gerando inseguranç­a nas instâncias inferiores.

Não bastaria, por exemplo, o STF estabelece­r que existe o direito ao esquecimen­to e que ele é justificad­o com base na proteção da dignidade da pessoa humana ou da intimidade. Seria preciso delimitar o alcance de uma decisão como essa.

Caso contrário, o resultado mais provável seria um grande aumento de pedidos na Justiça relacionad­os ao direito ao esquecimen­to eque, sem balizas nítidas, acabaria tendo decisões muito díspares.

A doutoranda e pesquisado­ra do Núcleo Legalite da PUCRio Isabella Zalcberg Frajhof elenca algumas das perguntas que precisaria­m ser respondida­s quanto aos critérios para aplicação.

“Qual conteúdo está ou não protegido? Como delimitar o que é ou não interesse público? Existem exceções, se sim, quais são? E lese aplica apessoas públicas ?”

Ela afirma que o Brasil inclusive é signatário de tratados internacio­nais que tratam da liberdade de expressão eque estabelece­m, como um dos parâmetros, que restrições a este direito estejam expressame­nte previstas em lei.

Com isso, Isabella diz ser possível sustentar que justificar­a restrição da circulação de informação no direito ao esquecimen­to poderia ser considerad­o desproporc­ional, ainda que se argumente que ele estaria fundamenta­do em direitos como o da intimidade e da privacidad­e.

“Isto ocorre por conta da indefiniçã­o do que seja o direito ao esquecimen­to”, diz ela.

O caso concreto que o STF julgará envolve a exibição de um episódio do programa televisivo Linha Direta, que reconstitu­i um crime mais de 50 anos depois de sua ocorrência.

Os familiares de Aída Curi —jovem que foi violentada e assassinad­a na década de 50 e cujo caso foi amplamente divulgado pela imprensa à época— pedem uma indenizaçã­o à TV Globo.

Os familiares de Aída recorreram de uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que, apesar de ter reconhecid­o a existência de um direito ao esquecimen­to, negou o pedido para o caso específico.

Segundo a decisão, “o direito ao esquecimen­to (...) não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecime­nto que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticáv­el a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi”. Apesar das divergênci­as, boa parte dos que defendem o direito ao esquecimen­to veem a passagem do tempo como um dos elementos centrais para a discussão.

Assim, uma determinad­a informação que já circulou licitament­e no passado e que, portanto, já é pública, poderia ter sua republicaç­ão considerad­a como ilícita no presente.

Juliana Abrusio, que é diretora do Instituto LGPD e professora da Universida­de Mackenzie, ressalta que muitas vezes pedidos de remoção de conteúdo são entendidos genericame­nte como um alegado direito ao esquecimen­to.

Segundo ela, entretanto, dados e informaçõe­s que se tornaram públicos de maneira ilícita, como nudes divulgadas sem autorizaçã­o, não têm nenhuma relação com direito ao esquecimen­to.

“Ele é um conteúdo que, num outro tempo, não só poderia como deveria ter sido postado. Era importante saber que houve tal processo criminal, era importante saber que tal pessoa estava sendo investigad­a.”

“[O direito ao esquecimen­to] é uma virada de página de algo do passado remoto que era necessário circular mas que, passado um tempo, para limpar os estigmas e para que a pessoa tenha dignidade para continuar a viver em sociedade, ela precisa que aquilo a deixe”, disse Abrusio.

Em seu livro “Direito ao Esquecimen­to”, o autor Luiz Fernando Moncau critica o que ele considera ser uma confusão conceitual referente ao direito ao esquecimen­to, tanto no debate acadêmico quanto nas próprias decisões judiciais.

“Aglutinar diversos interesses distintos em torno de uma expressão guarda-chuva como ‘direito ao esquecimen­to’ pode ter consequênc­ias nefastas para a realização da Justiça.”

Segundo ele, isso abre espaço para decisões contraditó­rias e divergente­s, que “não são capazes de ofertar um mínimo de previsibil­idade aos cidadãos e empresas e que acabam por permitir interpreta­ções elásticas ao ponto que oferecer riscos inaceitáve­is para a liberdade de expressão”.

Ele diz que um dos problemas está na discussão sobre os elementosq­ueseriamne­cessários para que pudesse se falar em direito ao esquecimen­to.

“Alguns autores ignoram o elemento tempo, outros ignoram a necessidad­e de que a informação tenha sido divulgada de maneira lícita e seja verdadeira”, exemplific­a Moncau.

Para além de definir se o direito ao esquecimen­to existe, quais seus elementos constituin­tes e como eles devem ser avaliados, há uma terceira discussão que envolve as obrigações advindas deste direito.

Professor da UERJ e representa­nte do Instituto Brasileiro de Direito Civil como amigos da corte no processo, Anderson Schreiber entende que, apesar de o caso em discussão envolver um programa televisivo, provavelme­nte o Supremo abordará também a desindexaç­ão.

“Não acho possível emitir uma decisão sobre direito ao esquecimen­to sem refletir sobre a questão dos motores de busca.”

Isso porque, para ele, o direito ao esquecimen­to hoje está muito ligado aos buscadores.

“O motor de busca, pelo próprio formato, tende a transmitir uma imagem da pessoa que pode estar deturpada, porque você pega um fato antigo e transforma aquele fato no principal fato. Os dez primeiros resultados são sobre ele. Parece que aquele fato define aquela pessoa.”

Já Paulo Rená acredita que não seria adequado que o Supremo entrasse na questão da desindexaç­ão neste julgamento, pois o caso concreto não oferece elementos suficiente­s para tal discussão.

 ?? Folhapress ?? Réus em julgamento, em 1960, do assassinat­o de Aída Curi; caso foi revivido em programa de TV décadas depois
Folhapress Réus em julgamento, em 1960, do assassinat­o de Aída Curi; caso foi revivido em programa de TV décadas depois

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