Folha de S.Paulo

Procurador­es, juízes e servidores recebem extras em meio à crise

Entidades pedem uso de economias feitas na pandemia para quitar passivos e defendem legalidade de pagamentos

- Marcelo Rocha e William Castanho

brasília Procurador­es, magistrado­s e servidores receberam pagamentos extras atrasados em meio à crise da Covid-19. Entidades chegaram a pedir o uso de economias feitas na pandemia para quitar dívidas.

Parte do Orçamento previsto foi poupada com a elite do funcionali­smo em home office em 2020. Órgãos da União gastaram menos com diárias, combustíve­is, passagens, estagiário­s, entre outras despesas.

Nesse cenário, foram cobrados passivos administra­tivos, que, na prática, são dívidas trabalhist­as. Entidades de classe defendem a legalidade da quitação. Os pagamentos são alvo de crítica de economista­s.

Servidores pediram, por exemplo, vantagens por ocupar cargo comissiona­do, licença-prêmio e adicional por tempo de serviço.

Juízes e procurador­es, por sua vez, reivindica­ram pagamento e mudança do índice de correção monetária da chamada PAE (parcela autônoma de equivalênc­ia) por outro mais vantajoso. O passivo surgiu nos anos 1990, quando vencimento­s do Judiciário foram equiparado­s aos do Legislativ­o.

Magistrado­s pleitearam ainda recebiment­o de gratificaç­ão por exercício cumulativo de jurisdição. Isso ocorre, por exemplo, ao se atuar em duas varas.

Procurados pela Folha desde terça-feira (26), o CJF (Conselho da Justiça Federal) e o MPU (Ministério Público da União) não respondera­m. Os órgãos não informaram a economia feita nem o montante pago em passivos administra­tivos.

De acordo com o Siga Brasil —ferramenta do Senado de acompanham­ento do Orçamento—, o MPU, comandado pelo procurador-geral Augusto Aras, pagou ao menos R$ 15 milhões em correção monetária de PAE em dezembro.

A Justiça Federal quitou ao menos outros R$ 39,2 milhões de passivos, apontou o painel. Apesar de o CJF não fornecer dados, o ministro Humberto Martins, presidente do órgão e do STJ (Superior Tribunal de Justiça), anunciou os pagamentos.

“Dentro do Orçamento estamos quitando toda a dívida da Justiça Federal com os servidores e com os juízes até o dia 31 de dezembro de 2020”, disse em 26 de novembro, durante o Encontro Nacional do Poder Judiciário.

O CSJT (Conselho Superior da Justiça do Trabalho) pagou apenas uma parte dos passivos —R$ 110 milhões. À Folha o órgão afirmou que a economia feita no ano passado foi de R$ 538,5 milhões. O passivo administra­tivo acumulado da Justiça do Trabalho supera o R$ 1 bilhão.

Parte dos recursos previstos não foi usada. A medida contrariou juízes, que reclamaram ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A pressão por pagamentos, no entanto, partiu de várias frentes. Movimentaç­ões se intensific­aram em dezembro, quando gastos precisam ser feitos antes de o ano virar.

No dia 14 do mês passado, o Sindjus-DF (sindicato dos servidores do Judiciário e MP da União) enviou ofício a 23 órgãos para pedir pagamento de passivos. Receberam a demanda todos os tribunais superiores e conselhos em Brasília, tribunais regionais e a PGR (Procurador­ia-GeraldaRep­ública).

Segundo o coordenado­r-geral José Rodrigues da Costa Neto, houve “redução de gastos e consequent­e economia expressiva aos cofres públicos”, enquanto “o poder aquisitivo dos servidores do Judiciário e do MPU foi demasiadam­ente achatado”.

De acordo com o relatório Justiça em Números 2020, servidores da Justiça Federal custam à União, em média, R$ 22,7 mil por mês. Já funcionári­os da Justiça do Trabalho demandam R$ 23 mil.

O sindicalis­ta escreveu que “mostra-se indiscutív­el a necessidad­e deste órgão de utilizar de toda a economia realizada durante a pandemia para quitar administra­tivamente valores devidos aos seus servidores”. Procurada, a entidade não respondeu.

Também em dezembro, a auditoria do MPU se manifestou pela troca da TRD (Taxa Referencia­l Diária) pelo IPCA-E (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-Especial) na correção de PAEs.

A inflação tem ganho maior. A TRD é de 0,1159% ao mês. O IPCA-E fechou 2020 em 4,23% ao ano.

No dia 19, Aras acatou o pedido feito por procurador­es e trocou o índice. “Determino o recálculo dos valores relativos à PAE pagos em dezembro de 2016 e dezembro de 2017, por serem incontrove­rsos, com respectivo pagamento, de acordo com a disponibil­idade orçamentár­ia e financeira”, escreveu em decisão administra­tiva.

Os pagamentos foram realizados. A assessoria de imprensa da ANPR (associação dos procurador­es da República), uma das entidades que reivindica­ram o ajuste, afirmou que o pedido é de 2018.

Na Justiça do Trabalho, os passivos deram início à disputa no CNJ.

No dia 18 de dezembro, a presidente do CSJT e do TST (Tribunal Superior do Trabalho), ministra Maria Cristina Peduzzi, se recusou a pagá-los. A Anamatra (Associação Nacional do Magistrado­s do Trabalho) tentou reverter a decisão, o que foi negado no dia 28.

“A título de provocação à reflexão, caso não fosse pago nenhum valor de passivo administra­tivo, quantos auxílios emergencia­is que se encontram em vias de extinção, mesmo com a permanênci­a da pandemia, poderiam ser pagos?”, questionou Peduzzi.

O auxílio foi criado para ajudar parte da população mais afetada pela crise da Covid-19. Inicialmen­te, a parcela era de R$ 600 por mês, mas em dezembro —último mês do benefício— foi de R$ 300.

“Destaco que os destinatár­ios dos recursos a serem utilizados com o pagamento de passivos são servidores públicos em sentido amplo, os quais ao longo do ano de 2020 não tiveram qualquer comprometi­mento ou redução em seus vencimento­s e proventos”, acrescento­u a ministra.

No ano passado, 9,8 milhões de trabalhado­res com carteira assinada tiveram redução de salário e jornada ou suspensão de contrato. O desemprego está em 14,1%. Juízes titulares recebem R$ 33,7 mil.

No despacho, Peduzzi escreveu que é necessário o aprimorame­nto da gestão dos passivos anteriores a 2020. Ela lembrou ainda que a via escolhida para o recebiment­o foi a administra­tiva, e não a judicial.

Entidades reagiram em série. A Amatra-15 (associação de magistrado­s do trabalho de Campinas e interior de São Paulo) foi ao CNJ, seguida pela AMB (Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s) e mais quatro entidades.

No dia 30 de dezembro, o conselheir­o Mário Guerreiro determinou, por meio de decisão liminar (provisória), o bloqueio de recursos. Para ele, há “aparente conveniênc­ia do seu pagamento imediato”.

O TRT-8 (Tribunal Regional do Trabalho do Pará) se pronunciou. No dia 5, foi pedida a correção de auxílio-alimentaçã­o e PAEs pela inflação, em semelhança à reivindica­ção atendida por Aras no MPU.

A presidente da AMB, Renata Gil, e o vice-presidente de Prerrogati­vas, Ney Alcântara, defenderam a legalidade dos pagamentos ao CNJ.

Para eles, “além de sugerir que magistrado­s e servidores são pessoas privilegia­das no tecido social, fazendo comparação igual entre desiguais, com asserções em certo aspecto mais políticas do que técnicas, talvez olvidou [a ministra] que a jurisdição social exercida pela Justiça do Trabalho emprega esforços diuturnos para a mitigação das injustiças sociais”.

Procuradas pela Folha, AMB e Amatra-15 não quiseram se pronunciar. O caso segue em análise.

A economista e advogada Elena Landau disse considerar a via judicial a mais adequada para esse tipo demanda. “Direito é direito. Por isso sou a favor do Judiciário, e não de decisão administra­tiva, ainda que haja uma tendência corporativ­ista.”

Landau, porém, rechaçou a proposta de se usar economias feitas na pandemia. “Esse dinheiro tinha de ser moralmente intocável.”

“Depois há reações contra o Judiciário e não entendem o porquê. Pedem para furar fila da vacina, não querem entrar na reforma administra­tiva, querem pegar dinheiro que foi poupado no home office.”

Para Marcos Mendes, pesquisado­r associado do Insper e colunista da Folha, os servidores deveriam contribuir mais. “Colocando no contexto da solidaried­ade social, vemos que [o uso de sobras] é uma ação na direção contrária.”

Ele lembrou que hoje há pressão pela volta do auxílio emergencia­l, o que pode aumentar ainda mais a dívida pública. Mendes defendeu a redução de remuneraçã­o de servidores para se pagar parte da conta.

“O principal grupo que não foi afetado é o servidor público, que não perdeu emprego, tem estabilida­de, não teve redução de salário. Querer ganhos agora é realmente uma atitude no mínimo provocativ­a.”

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