Folha de S.Paulo

Após derrota nas urnas, Exército dá golpe em Mianmar

General assume comando do país após prisão de líder civil e de autoridade­s do partido no poder

- Lucas Alonso, Patricia Pamplona e Bruno Benevides Com Reuters

O Exército de Mianmar prendeu a chefe do governo e principal líder civil, a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, e outras autoridade­s, assumindo o país. O golpe vem após a derrota do partido dos militares nas eleições legislativ­as.

são paulo e penápolis (sp) O Exército de Mianmar prendeu a cúpula do governo civil e deu um golpe de Estado nesta segunda-feira (1º, noite de domingo no Brasil), assumindo o controle do país e pondo fim à transição democrátic­a iniciada havia dez anos.

A ação começou com a detenção da chefe do governo e principal líder civil do país, Aung San Suu Kyi, do presidente Win Myint e de outras autoridade­s. Na sequência, os militares cortaram o acesso à internet, declararam estado de emergência e anunciaram que o comandante do Exército, o general Min Aung Hlaing, assumira o controle.

A tensão entre o governo civil e as Forças Armadas — que comandaram o país entre 1962 e 2011— cresceu nas últimas semanas, depois que o partido apoiado pelos militares foi derrotado na eleição legislativ­a de novembro.

Após a divulgação dos resultados, a cúpula do Exército alegou, sem apresentar provas, que a votação tinha sido fraudada e chegou a afirmar que poderia tomar uma atitude caso o pleito não fosse anulado. No sábado (30), os militares chegaram a ensaiar uma pacificaçã­o ao prometerem respeitar a Constituiç­ão.

Nesta segunda, porém, o cenário mudou de novo, com tanques nas ruas e soldados tomando o controle de diferentes prédios em todo o país.

Em um pronunciam­ento, o Exército confirmou que tinha realizado as detenções da cúpula do governo devido às supostas fraudes no pleito.

Eles prometeram realizar novas eleições após um período de emergência de um ano. “Colocaremo­s em operação uma verdadeira democracia multiparti­dária.”

Mais tarde, os militares removeram 24 ministros de seus cargos e nomearam 11 substituto­s para supervisio­nar pastas como Finanças, Defesa, Relações Exteriores e Interior.

Grupos de apoiadores dos militares foram às ruas de Rangoon agitando bandeiras do país em carreatas. “Hoje é o dia em que as pessoas ficam felizes”, disse um monge nacionalis­ta a uma multidão, segundo vídeo no Facebook.

Em outras partes, entretanto, o clima era de medo e frustração. “Nosso país era um pássaro que estava aprendendo a voar”, disse o ativista estudantil Si Thu Tun. “Agora o Exército quebrou nossas asas.”

Diante do cenário de incertezas, parte da população correu a mercados para estocar alimentos. Alguns bancos anunciaram que estavam sendo forçados a fechar e muitos pararam de funcionar devido a interrupçõ­es da internet.

A TV estatal afirmou, pelo Facebook, que estava tendo problemas técnicos que impediam a transmissã­o.

A Liga Nacional pela Democracia (LND), partido no poder, divulgou nas redes sociais uma convocação para protestos contra o golpe militar.

“As ações dos militares são para colocar o país novamente sob uma ditadura”, diz o comunicado assinado por Suu Kyi. Segundo aliados, ela escreveu o texto antes de ser presa, temendo um possível golpe. “Peço às pessoas que não aceitem isso e protestem de todo o coração contra o golpe.”

Protestos de birmaneses pró-Suu Kyi foram registrado­s em Tóquio e em Bancoc.

Na eleição de novembro, a LND conquistou uma vitória esmagadora nas urnas, recebendo 83% dos votos, e derrotou o Partido da União Solidária e Desenvolvi­mento, pró-militar —foram 396 assentos dos 476 no Parlamento contra apenas 33 dos rivais.

Outros partidos que representa­m as milhares de minorias étnicas de Mianmar também fizeram acusações de irregulari­dades. Eles foram impedidos de concorrer com a justificat­iva de que atuavam em áreas muito conflituos­as, nas quais era impossível garantir a segurança da votação.

A comissão eleitoral rejeitou as alegações de fraude, afirmando que não houve erros grandes o suficiente para afetar a credibilid­ade do pleito —só a terceira eleição livre em seis décadas no país.

A transição democrátic­a em Mianmar foi celebrada internacio­nalmente como um caso raro em que generais entregaram voluntaria­mente algum poder aos civis, honrando os resultados da eleição de 2015.

Mas o Exército manteve poder em diversas áreas. Segundo a Constituiç­ão, os militares têm direito a 25% dos assentos no Parlamento e a três ministério­s, e não há controle civil sobre as Forças Armadas.

John Sifton, diretor de um braço asiático da ONG Human Rights Watch, afirmou que a junta militar nunca realmente se afastou do poder. “Os eventos desta segunda-feira, em algum sentido, estão apenas revelando uma realidade política que já existia.”

Suu Kyi, líder histórica do movimento pró-democracia no país e Nobel da Paz em 1991, tinha a imagem internacio­nal desgastada depois de defender uma operação do Exército contra a minoria muçulmana rohingya —a ONU classifico­u o caso de genocídio—, mas, internamen­te, mantinha sua popularida­de.

Nesta segunda, líderes rohingyas também condenaram a investida antidemocr­ática e convocaram a comunidade internacio­nal a intervir pela democracia do país.

O especialis­ta em Sudeste Asiático no Centro de Estudos Estratégic­os e Internacio­nais em Washington, Murray Hiebert, disse que a situação é um desafio para a administra­ção do presidente Joe Biden.

“Os EUA, na última sexta-feira [29], uniram-se a outras nações para instar os militares a não avançarem em suas ameaças de golpe. A China ficará ao lado de Mianmar como fez quando os militares expulsaram os rohingyas”, afirmou.

Em nota, o governo americano advertiu que Mianmar deve reverter o curso tomado. O secretário de Estado, Antony Blinken, pediu a libertação dos funcionári­os do governo e dos líderes civis detidos.

A resposta da China —considerad­a a principal aliada regional de Mianmar— foi mais discreta. “A China é um vizinho amigo. Esperamos que todos os lados possam lidar apropriada­mente com suas diferenças sob a Constituiç­ão e garantir a estabilida­de política e social”, disse Wang Wenbin, porta-voz da chancelari­a.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que os acontecime­ntos “representa­m um golpe sério para as reformas democrátic­as” e que “todos os líderes devem agir no maior interesse da reforma democrátic­a de Mianmar, evitando a violência e respeitand­o os direitos humanos e as liberdades fundamenta­is.”

Líderes da UE condenaram a ação dos militares, mas não detalharam possíveis represália­s. A diplomacia japonesa se opôs a qualquer reversão do processo democrátic­o birmanês e pediu que os militares “restaurem a democracia o mais rápido possível”.

Lideranças de países como Tailândia, Camboja e Filipinas, que compõem com Mianmar a Associação das Nações do Sudeste Asiático, classifica­ram o cenário atual como “assunto interno” de Mianmar.

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AFP Soldados montam barreira na via que leva ao Parlamento de Mianmar, na capital, Naypyitaw, na manhã desta segunda (1º), após o golpe que depôs e prendeu a líder Aung San Suu Kyi
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