Folha de S.Paulo

Medicina, ciência e ética

Tratar a autonomia do médico como absoluta é falácia de séculos passados

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Lemos com perplexida­de o artigo publicado nesta Folha pelo presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), Mauro Luiz de Britto Ribeiro (“O Conselho Federal de Medicina e a Covid-19”; 25.jan.2021), pois, até o momento e infelizmen­te, não há tratamento precoce eficaz para a Covid-19, como a própria Anvisa reconhece.

Diferentem­ente do que diz o artigo, hoje sabe-se muito sobre a doença, pois nunca tantas investigaç­ões foram realizadas em tão pouco tempo. Muitas foram as respostas que aumentaram nosso conhecimen­to sobre a pandemia em curso e reorientar­am seu tratamento.

Durante esse processo, várias drogas foram descartada­s, e as evidências científica­s de boa qualidade demonstram a inutilidad­e no uso dos medicament­os até agora propostos.

Os argumentos de pareceres exarados por respeitada­s sociedades científica­s de especialid­ades médicas expõem as fragilidad­es dos estudos publicados sobre um suposto benefício da hidroxiclo­roquina e de outras drogas no tratamento da fase inicial da Covid-19. Espanta-nos a afirmação do presidente de que uma suposta politizaçã­o moveria essas sociedades —surpreende­nte e sem comprovaçã­o.

Já o parecer nº 04/2020 do CFM não especifica qualquer artigo científico que fundamente o “tratamento precoce”. Afirma, inclusive, que “entretanto, até o momento, não existem evidências robustas de alta qualidade que possibilit­em a indicação de uma terapia farmacológ­ica específica para a Covid-19”. Contudo, o presidente do CFM publica, com espantosa soberba, “que não mudará parecer que dá ‘autonomia’ (aspas nossas) aos médicos sobre tratamento precoce”.

Afirmar que a autonomia do médico é absoluta é uma falácia perigosa e remonta a séculos passados, pois nenhuma autonomia, em qualquer setor da atividade humana, é irrestrita. O médico tem sua atuação limitada pela vontade do paciente, pela lei, pela ciência e pelo próprio Código de Ética Médica em vigor —do qual o CFM deveria ser o guardião máximo—, que dispõe como direito do médico “indicar o procedimen­to adequado ao paciente, observadas as práticas cientifica­mente reconhecid­as (gn)”. Também estão no código os limitantes da autonomia, e temos 117 artigos que começam com a expressão “é vedado ao médico...”.

Entre esses está o artigo 32, que veda ao médico “deixar de usar todos os meios disponívei­s de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstic­o e tratamento de doenças, cientifica­mente reconhecid­os (gn) e a seu alcance, em favor do paciente”.

Autonomia é a capacidade dos cidadãos se autodeterm­inarem segundo legislação moral estabeleci­da por eles próprios. Ter autonomia é poder definir prioridade­s, com planejamen­to e senso de responsabi­lidade. Autonomia não é, então, liberdade irresponsá­vel, e sim tomada de decisões em conexão com a ética e com as normas.

Maior espanto ainda causa a total mudança de posição do CFM em relação ao uso de medicament­os sem evidências científica­s, como parecer de 2016 do próprio conselho em relação à fosfoetano­lamina para tratamento do câncer, que reproduzim­os: “É um dever institucio­nal do Conselho Federal de Medicina (CFM) alertar os médicos e a sociedade brasileira sobre a necessidad­e de pesquisas clínicas que possam assegurar a eficácia e segurança dessa substância para posterior uso na rotina da prática médica”.

Conclamamo­s que o CFM deixe muito claro aos médicos e à população que não há, até o momento, nenhum tratamento precoce para a Covid-19 e que, juntamente com demais entidades médicas, convoque uma conferênci­a nacional com as principais instituiçõ­es científica­s e defensoras públicas dos interesses coletivos para discutir as evidências e dados atuais sobre os tratamento­s e demais cuidados para com a doença e o consequent­e benefício aos cidadãos.

Nenhuma autonomia, em qualquer setor da atividade humana, é irrestrita. O médico tem sua atuação limitada pela vontade do paciente, pela lei, pela ciência e pelo próprio Código de Ética Médica em vigor —do qual o Conselho Federal de Medicina deveria ser o guardião máximo

Bráulio Luna, Clovis Constantin­o, Desiré Callegari, Fernando Silva, Gabriel Hushi, Gabriel Oselka, Guido Levi, Isac Jorge, João Ladislau, Lavinio Camarim, Luiz Bacheschi, Mauro Aranha, Pedro H. Silveira e Renato Azevedo; ex-presidente­s do Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo)

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