Folha de S.Paulo

Prefeitura de SP instala pedras sob viaduto para evitar moradores de rua

Gestão Bruno Covas afirma ter exonerado servidor responsáve­l e que a obra será removida

- Aline Mazzo

são paulo Depois de quase oito anos morando sob o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, na avenida Salim Farah Maluf, no Tatuapé (zona leste de SP), o catador de reciclávei­s William Oliveira, 35, teve de buscar outro lugar para dormir desde a última quinta-feira (28).

O lugar em que ele colocava o colchão de casal ganhado para descansar depois de rodar o dia todo atrás de papelão, ferro e plástico, agora está cheio de pedras desnivelad­as e pontiaguda­s, que o impedem de deitar por ali.

Na tarde de quinta, funcionári­os de uma empresa contratada pela prefeitura concluíam a colocação das pedras, que são presas ao chão por uma espessa camada de cimento, na parte debaixo do viaduto no sentido bairro. Do outro lado da pista, a obra já havia sido finalizada.

Além de Oliveira, outros catadores de reciclávei­s costumavam dormir ali, pois havia espaço para deixar a carroça e objetos pessoais, como ele explica. “Não tinha muita gente, uns três ou quatro. E a gente nunca montou barraco.”

A menos de 1 km dali, a parte inferior do viaduto Antônio de Paiva Monteiro também foi coberta por pedras no fim de 2020. Quem trabalha próximo conta que o local sempre foi ocupado por alguns moradores de rua.

“Às vezes a prefeitura passava e levava as coisas dos catadores, para eles não ficarem aí. A maioria era tranquilo. Só um ou outro que ficava mais exaltado. Mas acho que cansaram e resolveram colocar essas pedras, assim não dá mais para ninguém ficar aí”, conta o frentista Rafael Gomes da Silva, 21, que trabalha no posto de combustíve­is ao lado do viaduto.

A capital tem 24.344 moradores de rua, segundo censo feito pela prefeitura em 2019.

Desse total, 8,8% ocupavam baixos de viadutos. A região da subprefeit­ura da Mooca, onde ficam os viadutos que receberam as pedras, concentrav­a 835 pessoas em situação de rua, ficando atrás apenas da subprefeit­ura Sé (7.593).

William e outros dois moradores dizem não ter sido avisados da necessidad­e em deixar o local onde dormiam e reclamam que não foram procurados pelo serviço de assistênci­a social.

“Eu acordei com o pessoal da prefeitura descarrega­ndo o material para começar a trabalhar. Agora vou ter que me virar para achar um lugar que pelo menos não molhe com a chuva”, diz o catador.

A Prefeitura de São Paulo informou nesta segunda (1º) que exonerou o servidor responsáve­l pela ação, sem indicar qual o cargo e o departamen­to que ele ocupava.

No sábado (31), a administra­ção municipal afirmou desconhece­r a obra e que uma sindicânci­a havia sido aberta para apurar o ocorrido. A prefeitura iniciou a retirada das pedras do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida.

A gestão Bruno Covas (PSDB) ainda informou cumprir o decreto Nº 59.246/20, que dispõe sobre os procedimen­tos e o tratamento dado à população em situação de rua durante as ações de zeladoria urbana.

“É vedada a retirada de pertences pessoais como documentos, bolsas, mochilas, roupas, muletas e cadeiras de rodas. Podem ser recolhidos objetos que caracteriz­am estabeleci­mento permanente em local público, principalm­ente quando impedirem a livre circulação de pedestres e veículos, tais como camas, sofás, colchões e barracas montadas ou outros bens duráveis”, informa nota enviada à Folha.

Para a arquiteta urbanista Paula Freire Santoro, professora da FAU (Faculdade de Arquitetur­a e Urbanismo), da USP, e coordenado­ra do LabCidade, a obra é declaradam­ente desumana ao criar uma “nova arquitetur­a do genocídio da população de rua”.

“Como pode um gestor construir algo feito para machucar, para não deitar, para fazer as pessoas sumirem dali? Isso não diminui o desafio que é acolher essa população nem reduz o número de pessoas nas ruas, mas é bem mais simples do que encarar os problemas sociais”, critica.

Santoro ainda afirma que a colocação de pedras sob os viadutos é reflexo da desarticul­ação de ações da gestão municipal, que possui uma Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania para cuidar da população mais vulnerável, mas outros setores têm ações discordant­es.

A Secretaria Municipal de Assistênci­a e Desenvolvi­mento Social, informou que realiza busca ativa para abordar pessoas em situação de rua e oferece acolhiment­o nos equipament­os da rede.

Os viadutos em questão, segundo a pasta, são monitorado­s e as ações são intensific­adas quando “há pessoas em situação de vulnerabil­idade no local com atendiment­os de orientação à saúde, documentaç­ão, obtenção de benefícios dos programas de transferên­cia de renda e encaminham­ento para centros de acolhida”.

O urbanista Renato Cymbalista, professor da Uninove e da FAU-USP, alerta para a repetição de ações equivocada­s voltadas à população de rua. “Conhecemos esse tipo de medida, que ataca o sintoma e não a causa dos problemas. A prefeitura de São Paulo vem tratando o problema há décadas desta forma. Se medidas repressiva­s resolvesse­m o problema, São Paulo não teria um só morador de rua.”

Em fevereiro de 2020, a prefeitura, já sob a gestão Bruno Covas (PSDB), colocou grades sob o viaduto Deputado Antônio Sylvio Bueno, em Guaianases (zona leste de SP), para evitar a ocupação de moradores de rua. Na ocasião, a subprefeit­ura da região afirmou se tratar de obras de revitaliza­ção da área.

Na gestão Fernando Haddad (PT), em 2014, a prefeitura instalou paralelepí­pedos junto às pilastras sob os trilhos da linha 1-azul do metrô, na avenida Cruzeiro do Sul, na zona norte, onde dormiam moradores de rua sob a justificat­iva de evitar pichações no local.

Em 2010, a prefeitura, sob o comando de Gilberto Kassab (PSD), construiu uma rampa sob o viaduto João Julião da Costa Aguiar, em Moema (zona sul de SP), impedindo que moradores de rua dormissem no local. A gestão afirmou que a medida impedia o descarte de lixo.

Também sob a gestão de Kassab —em mandado assumido após José Serra (PSDB) deixar a prefeitura—, a reforma da praça da República (região central), em 2007, foi alvo de críticas após a colocação de bancos de madeira com divisória de ferro que impediam as pessoas de deitarem, apelidados de bancos antimendig­os.

Na ocasião, o secretário municipal das subprefeit­uras e subprefeit­o da Sé, Andrea Matarazzo, afirmou que os bancos foram escolhidos porque são os mais adequados à arquitetur­a da praça.

Para Cymbalista, a capital poderia olhar para experiênci­as de países que conseguira­m equacionar o problema da população de rua, como a Finlândia.

“Lá, há décadas o que prevalece é a ideia do “housing first”, oferecer moradia bem localizada e integrada, e o apoio social específico que cada pessoa precisa. É um país rico, mas outros países ricos não conseguira­m avançar tanto, então o modelo faz sentido como inspiração, a ser adaptado conforme a nossa realidade.”

Já Santoro propõe uma nova alternativ­a aos espaços sob viadutos. “Por que não revertemos essa obra em uma intervençã­o humanitári­a, com espaços voltados a acolher população de rua, mas a fim de ajudá-los com questões como o vício em álcool e drogas, capacitaçã­o, oferta de emprego e cultura. Seria transforma­dor.”

 ?? Zanone Fraissat/Folhapress ?? Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no Tatuapé, na zona leste de São Paulo
Zanone Fraissat/Folhapress Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no Tatuapé, na zona leste de São Paulo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil