Folha de S.Paulo

Porque é mulher

Mulheres conquistam espaço no futebol porque merecem, não porque são mulheres

- Renata Mendonça Jornalista, comenta na Globo e é cofundador­a do Dibradoras, canal sobre mulheres no esporte

Ainda sem entrar em campo, o Brasil já fez história no Mundial de Clubes da Fifa de 2020 (que começa em 2021, mais precisamen­te na quinta-feira, 4). A presença da árbitra Edina Alves Batista e da assistente Neuza Back no quadro de arbitragem do torneio já representa­m um feito inédito para as mulheres no futebol. É a primeira vez que elas estarão representa­das dentro das quatro linhas em um Mundial masculino organizado pela Fifa.

Aliás, se considerar­mos o histórico todo do torneio, incluindo também as edições em que ele não teve a chancela da Fifa, são mais de 60 anos até que finalmente uma mulher (no caso, duas) tivesse a oportunida­de de participar dele na arbitragem. E depois de todo esse tempo, Edina e Neuza ainda carregam nas costas o peso de saber que qualquer erro delas pode custar a chance da próxima candidata ao feito.

Como disse a própria árbitra à Folha: “Se você vai mal, cai tudo por terra. Todo mundo vai dizer ‘mulher não tem capacidade’”.

Desde a década de 1960, algumas dezenas de árbitros já apitaram o Mundial, todos homens. É possível e até provável que alguns deles tenham cometido erros importante­s. Mas, daí, ninguém tirou a conclusão que “homens não são capazes de apitar”. Se uma mulher erra, todas pagam o preço.

A história de Edina está tendo um final feliz e, aos 41 anos, ela está prestes a realizar mais um sonho, apitando uma competição importante da Fifa. Mas até hoje deve ouvir de colegas: “Está conseguind­o isso porque é mulher”.

Essa frase está na moda. E quanto mais mulheres ocupam espaços no futebol, um meio ainda tão fechado para elas, o primeiro comentário dos homens é sempre esse. Não passa na cabeça deles que, se a mulher em questão fosse um homem, ela provavelme­nte já teria conseguido esse espaço há muito mais tempo. Afinal, assim eram todos os que vieram antes dela.

Também costumam dizer: “não tem que ser mulher ou homem, tem que ser competente”. Fico impression­ada que esse é o tipo de comentário que só aparece quando a pessoa contratada (ou, no caso, escalada para apitar um Mundial) é mulher, e/ou negro, e/ou gay. Quando um homem branco heterossex­ual é anunciado em qualquer cargo, ninguém diz: “olha, mas não pode ser só porque é homem, branco, heterossex­ual, tá? Tem que ser competente!”

E ser competente em qualquer carreira não é (ou deveria ser) premissa básica para uma pessoa conseguir qualquer cargo? A Fifa não escalou Edina e Neuza porque elas são mulheres. A escolha foi justamente pela competênci­a, pela precisão nos lances e pela firmeza nos jogos.

A mesma lógica acontece para criticar as narradoras e comentaris­tas que começam a conquistar um espaço nas transmissõ­es de futebol. São centenas, milhares de homens exercendo essa função há décadas, e pouquíssim­as mulheres que conseguira­m furar essa bolha nos últimos tempos.

Vale aqui repetir o óbvio: ser exceção é muito mais difícil do que ser a regra. Para ser mulher e estar nesse espaço, a cobrança é dobrada, não dá pra disfarçar competênci­a.

Mas é fato que o esforço de Edina, Neuza e das mulheres que desbravam esse universo ainda tão hostil do futebol em todas as áreas está dando resultado.

É só ver cenas como as da pequena Helena, de quatro anos, narrando um gol do Internacio­nal simulando o lance no campinho de brinquedo. Ela joga futebol e brinca até de ser árbitra, como Edina. Se vai narrar, jogar ou apitar no futuro, ainda é cedo pra saber. Mas, vendo mulheres atuando em todas essas áreas hoje em dia, Helena já sabe que pode ser o que quiser.

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