Folha de S.Paulo

‘Tel Aviv em Chamas’ é herdeiro do Allen de ‘Tiros da Broadway’

Influência do cineasta introduz frescor em uma comédia que discute a árida disputa entre palestinos e israelense­s

- Inácio Araujo

Tel Aviv em Chamas *****

Dir.: Sameh Zoabi. Com: Kais Nashif, Lubna Azabal, Yaniv Biton. 12 anos. Disponível no Belas Artes à la Carte

Não é preciso ir longe para encontrar a inspiração de “Tel Aviv em Chamas”, herdeiro direto do Woody Allen de “Tiros na Broadway”, de 1994. Ali, um dramaturgo intelectua­l, mas sem talento, acaba tendo seu texto retocado, corrigido e, de fato, reescrito por um gângster que não suporta ver aquele desperdíci­o no palco.

Aqui, Salam é o desajeitad­o assistente de uma novela palestina que tem o mesmo nome do filme. Está lá porque seu tio é o produtor e o protege, nada mais. Um palpite que dá aqui, outro ali, mais o azar ou a sorte, acabam por promover o rapaz a autor da novela, coisa para a qual não tem nenhuma competênci­a.

Como ele mora em Jerusalém e a novela é rodada em Ramallah, na Palestina, é obrigado a atravessar, diariament­e, o posto de fronteira israelense, com aquelas revistas rigorosas —para dizer o mínimo— que acontecem por lá. Por azar ou por sorte, ele topa numa dessas revistas com um oficial israelense cuja mulher adora a novela.

É esse oficial que se torna o, digamos, tutor do texto. Ou o primeiro tutor. Pois ao longo da comédia Salam terá de tourear os patrocinad­ores, os colegas, os atores, cada um trazendo a ele seus problemas, desejos ou caprichos.

Mas o problema maior, claro, é que o oficial israelense encaminha a novela para um lado que os palestinos não conseguem engolir. Então ele tem de tapear ora um lado, ora outro, enquanto ao mesmo tempo tenta seduzir Mariam, a bela médica palestina por quem é apaixonado.

Dada a proximidad­e com “Tiros na Broadway”, obviamente não se pode dizer que seja uma proposta muito original. Não é só a ideia geral que vem de lá, mas toda a estrutura do filme de Sameh Zoabi.

Ao mesmo tempo, é essa influência tão presente que permite ao filme introduzir certo frescor na árida disputa entre palestinos e israelense­s — além do jeito meio parvo do protagonis­ta Salam, o por sinal bem talentoso Kais Nashif.

Algo, porém, é bastante revelador, pois é a partir da opção pela comédia é que nos damos conta de como esses dois povos inimigos podem ser, paradoxalm­ente, muito próximos, possam se interessar pelas mesmas coisas, pelas mesmas guloseimas. E até pelas mesmas novelas.

Por aí, também, nos damos conta (a ser verdade o que está no filme) de que, mesmo nessa região tormentosa que é o Oriente Médio, o público no fundo está pouco se lixando para a trama de espionagem ou para saber se quem vai se dar bem no final da ficção é um lado ou outro. Quer é saber da trama romântica.

Não será demais questionar esse frescor e leveza de “Tel Aviv em Chamas”, já que aplicados a um dos problemas mais espinhosos do tempo presente. Conhecemos essa leveza e esse frescor quando levados por Elia Suleiman, por exemplo. Suleiman trata com ironia, porém com amargor, da situação palestina. Já Zoabi parece encarar a questão como algo que faz parte da natureza das coisas —melhor rir do que chorar.

O que o salva da iniquidade, no entanto, é um belíssimo plano em que o herói, Salam, vaga desesperad­o e sem documentos ao lado daquele monumento monstruoso, construído por Israel, que é o muro que separa os dois povos e parece existir para deixar claro aos palestinos que eles estão num grande presídio.

É um dos raros momentos em que “Tel Aviv em Chamas” lembra o espectador que não há muito a festejar além do misto de alívio pessoal e êxito romântico-profission­al que o simpático Salam, inadvertid­amente e aos trancos e barrancos, persegue.

É também possível pensar que, mesmo na sempre tensa situação do Oriente Médio, as pessoas querem, de tempos em tempos, fugir da árida realidade. Quem os reprovará?

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Divulgação Cena do filme ‘Tel Aviv em Chamas’, do diretor israelense Sameh Zoabi

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