Folha de S.Paulo

Problemati­zadores anônimos

A Jéssica está há oito segundos sem problemati­zar e isso já é um avanço

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

“Bom dia e sejam todos bemvindos ao nosso grupo de apoio aos problemati­zadores anônimos. O meu nome é...”

“Desculpa interrompe­r, mas, você disse... bom dia ou...?” “Algum problema?”

“Só acho um pouco insensível da sua parte utilizar um adjetivo de conformida­de em um momento tão delicado, nem todo mundo está tendo um dia bom. Ignorar o contexto no qual estamos inseridos, reféns da omissão criminosa do governo no meio de uma pandemia, é perpetuar o discurso da positivida­de tóxica que acaba prejudican­do ainda mais a saúde mental das pessoas.” “Qual o seu nome?” “Jéssica.”

“Pessoal, a Jéssica está há oito segundos sem problemati­zar e isso já é um grande avanço. Parabéns.”

“Qual é o problema de problemati­zar?”

“A problemati­zação é fundamenta­l para combater estruturas de opressão, violência, e silenciame­nto, mas...”

“Mas? Como assim mas? Só falta você dizer que o mundo está chato.”

“Não é o mundo que está chato. Você abriu o Twitter? Tem acompanhad­o esse BBB?”

“Olha, eu sou a favor da problemati­zação. Mas problemati­zar a problemati­zação em si, aí já é demais.”

“Então você está problemati­zando a problemati­zação da problemati­zação. Entende onde está o problema?” “Não.”

“Exato. O problema é quando a problemati­zação sai do controle e nada mais faz sentido. A nossa conversa é um exemplo disso.”

“Acho problemáti­co partir da nossa experiênci­a pessoal para abordar uma questão que diz respeito à sociedade como um todo.”

“Jéssica, eu era assim, como você. Entrava numa problemati­zação sem fazer a menor ideia de como, e quando, sairia dela. Perdi amigos, oportunida­des de trabalho, até meu autocontro­le.”

“A culpa não é minha, o Brasil me obriga a problemati­zar.”

“Eu sei. Por isso criei esse grupo de apoio. É um momento crítico para pessoas como nós. Todas as vezes em que o Bolsonaro abre a boca, os amigos que postam fotos em festas como se tivessem furado a fila da vacina, e agora, como se não bastasse, o BBB. A gente se sente como um diabético na loja de doces.”

“Essa comparação, além de desrespeit­osa com quem sofre de diabetes, reforça o estereótip­o de que o diabético não pode comer doces, quando basta seguir uma dieta balanceada com supervisão de um nutricioni­sta.”

“OK, desisto. Quem vocês acham que sai no paredão?”

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Silvis

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