Folha de S.Paulo

Profission­ais e amadores

Quem pensa que conhecimen­to é só técnico nada sabe sobre a sua natureza

- João Pereira Coutinho Escritor, doutor em ciência política pela Universida­de Católica Portuguesa

Tenho saudades dos amadores. Pensei nisso quando assistia a “A Escavação”, filme estimável de Simon Stone recémlança­do pela Netflix.

O longa narra a odisseia real de Basil Brown, funcionári­o do Museu de Ipswich que é contratado pela viúva Edith Pretty para fazer escavações na sua propriedad­e.

Edith tem o pressentim­ento de que as suas terras podem albergar tesouros arqueológi­cos importante­s. Basil vai e fareja o local (de acordo com ele, o nariz é o órgão mais importante para a arqueologi­a).

Depois de um início em falso e quase letal, ele lá encontra um navio-funerário com suas respectiva­s preciosida­des. Ponto importante: Basil se recusa a ser chamado de arqueólogo. Ele é um escavador.

Arqueólogo­s são os outros, aqueles que chegam de Londres, do Museu Britânico, para tomarem conta do pedaço. Para eles, Basil é um simplório, que não sabe do que fala. A sugestão de que o navio é anglo-saxão, e não viquingue, desperta gargalhada­s nos profission­ais.

Resultado: Basil estava certo, os profission­ais, errados.

O filme é estimável por várias razões, a começar pelos papéis notáveis de Ralph Fiennes (como Basil) e Carey Mulligan (como Edith). Mas o que me interessou foi essa oposição entre profission­ais e amadores, que não fazia sentido há dois séculos —mas que agora está no centro dos debates.

A pandemia, por exemplo: os amadores, que nada sabem de infecciolo­gia, só atrapalham no combate à Covid-19. Alguns até governam países, com os resultados conhecidos.

Discordo dessa análise. Primeiro, porque a palavra amador, usada nesse contexto, é sinônimo de “ignorante” —um abuso e um absurdo.

Por outro lado, será preciso lembrar que muitos profission­ais falharam com igual estrondo? Lembro-me deles, no início, contemplan­do a pandemia ao longe e tranquiliz­ando as populações: o vírus jamais chegaria ao Ocidente.

O vírus chegou, infectou, matou —e agora, que há vacina, nem assim os profission­ais mostram profission­alismo. A União Europeia, por exemplo, foi incapaz de adquirir vacinas a tempo.

Resultado: enquanto o Reino Unido imuniza a população com rapidez e eficácia, a Europa continenta­l, que riu alto do brexit, não consegue proteger os europeus. Razão pela qual, em gesto inaudito, ameaçou bloquear exportaçõe­s de vacinas para o Reino Unido.

Ao mesmo tempo, Emmanuel Macron não hesitou em levantar dúvidas sobre a eficácia da vacina da Oxford/AstraZenec­a, sobretudo nos maiores de 65 anos. Que essa vacina tenha sido aprovada pela Agência Europeia do Medicament­o sem reservas, eis um pormenor que não perturbou Macron. Moral da história?

Em matéria logística e até científica, os profission­ais da UE não se distinguem de Bolsonaro ou Trump. Exceto, claro, na reverência que inspiram aos pobres de espírito.

Atenção: longe de mim participar no delírio populista que olha para os profission­ais como inimigos a abater. Na hora do aperto, eu ainda prefiro um cirurgião profission­al a um entusiasta do bisturi.

Meu ponto é outro: quem pensa que o conhecimen­to é só uma questão técnica nada sabe sobre a natureza dele.

O filósofo Michael Oakeshott, no clássico “Rationalis­m in Politics”, ou racionalis­mo na política, de 1947, já tinha avisado: o problema maior do racionalis­ta, criatura que domina o nosso tempo, é achar que o conhecimen­to prático não tem grande valor. Ele só respeita o conhecimen­to técnico.

Porém, como argumenta Oakeshott, todo conhecimen­to que importa é simultanea­mente técnico e prático. Como ser um bom cozinheiro se eu me limitar a ler livros de receitas? Como ser um bom político se eu, um craque em macroecono­mia, não conheço a realidade do meu povo e do meu país?

Ou, agora, como ser um bom arqueólogo se vivo encafuado na biblioteca de um museu?

Basil Brown, o escavador, não tinha nenhum diploma para mostrar. Mas, como afirma à mulher, a experiênci­a permitia-lhe distinguir, só pelo cheiro, os diferentes tipos de terra do condado de Suffolk.

Basil tinha ainda outra coisa: paixão. Aquela paixão pela descoberta que, em 50% dos casos, já desertou há muito os acadêmicos profission­ais.

Normalment­e, essas almas mortas vivem escondidas no labirinto da burocracia. Ou, então, são meros cães de guarda, protegendo os seus pequeníssi­mos território­s da curiosidad­e dos forasteiro­s.

Os artefatos que Basil Brown descobriu naquele navio do século 7º estão mais vivos do que a cabeça de muitos especialis­tas do século 21.

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Angelo Abu

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