Folha de S.Paulo

Pandemia deixa mais da metade das mulheres fora do mercado de trabalho

Crise dos serviços, setor empregador da população feminina, e cuidado com filhos atrasam recuperaçã­o

- Fernanda Brigatti

são paulo O efeito devastador da Covid-19 sobre o emprego —em especial sobre o setor informal— está atrasando a volta das mulheres ao mercado de trabalho.

Segundo a Pnad Contínua, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a), 8,5 milhões de mulheres tinham deixado a força de trabalho no terceiro trimestre de 2020 (dado mais recente disponível), na comparação com o mesmo período do ano anterior.

Esse movimento rumo à inatividad­e —situação em que a pessoa não trabalha nem procura uma ocupação— fez com que mais da metade da população feminina com 14 anos ou mais ficasse de fora do mercado de trabalho. A taxa de participaç­ão na força de trabalho ficou em 45,8%, uma queda de 14% em relação a 2019.

Na comparação com o primeiro trimestre, antes de os efeitos da pandemia tomarem conta da economia e da vida social das famílias, o número de trabalhado­res fora da força de trabalho teve um incremento de 11,2 milhões de pessoas. Dessas, 7 milhões eram mulheres.

Apesar da retomada do mercado formal no segundo semestre (embora as vagas criadas não tenham sido suficiente­s para repor as perdidas no início da pandemia) e de o informal registrar cresciment­o, as vagas abertas no fim de 2020 ainda podem levar mais um tempo para repor a participaç­ão de mulheres em postos de emprego.

Segundo especialis­tas, a recuperaçã­o também será mais heterogêne­a, pois chegará depois às mulheres mais pobres e com menos qualificaç­ão.

No emprego formal, o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desemprega­dos) mostra que, enquanto no ano passado 230,2 mil vagas criadas foram ocupadas por homens, as mulheres perderam 87,6 mil postos.

De abril a dezembro, os nove meses inteiramen­te sob acrise sanitária, o saldo de vagas ficou positivo em 168 mil para eles. As mulheres tiveram 94,9 mil colocações eliminadas.

Parte do que explica esse qua dr oéanterior­à pandemia eé oque os pesquisado­res chamam de questões estruturai­s, como a desigualda­de na inserção das mulheres no mercado e a maior rotativida­de entre elas.

Em momentos de choque, como foi a pandemia, grupos mais vulnerávei­s são os mais rapidament­e atingidos.

Segundo a economista Diana Gonzaga, da UFBA (Universida­de Federal da Bahia), também são muito afetados por essas crises os jovens, a população negra e aqueles com baixa qualificaç­ão.

Ainda nas questões estruturai­s está o conjunto de normas sociais que atribui às mulheres a responsabi­lidade —se não toda, a maior parte— pelos cuidados domésticos e com filhos.

A esse fator soma-se outro, conjuntura­l: a falta de um plano sólido e seguro para reabertura de creches e escolas.

“A pandemia vem punindo triplament­e as mulheres. Além das questões que afetam todos os grupos, como perda de renda e emprego, cai sobre elas grande parte dos cuidados com filhos e casa”, disse Diana Gonzaga.

Segundo a pesquisado­ra Solange Gonçalves, coordenado­ra do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero, ligado à Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo), a saída de mulheres da força de trabalho é geralmente associada aos cuidados domésticos, com os filhos e com outras pessoas da família.

No caso dos homens, a saída para a inatividad­e está mais relacionad­a a problemas de saúde.

Mãe de duas crianças, de 8 e 3 anos, Ana Carolina Tinen Ueda, 32 anos, trabalha com cartonagen­s de luxo em uma pequena empresa familiar. Ela é o que o IBGE chama de trabalhado­r por conta própria com CNPJ, uma categoria de trabalho formal.

Antes da pandemia, o tempo dos filhos na escola era o período de produção no ateliê que montou em casa. As caixas e lembrancin­has são feitas a mão, uma por uma. Com os dois em casa, o tempo para o trabalho remunerado sumiu.

“Fico com eles 24 horas por dia. Quando as aulas online começaram, era tudo muito novo. Eles não sabiam mexer direito [no sistema para as aulas], a gente também não. E ainda eram os dois no mesmo horário, uma confusão”, disse.

O início das aulas em casa coincidiu com um aumento na demanda por pedidos de um dos produtos que ela fabrica.

“Tive que fechar a agenda porque não tinha condições de fazer, e eles [os filhos] são a minha prioridade.”

Na comparação com o volume de pedidos que assumia, hoje consegue atender cerca de um terço do que fazia antes.

A economista Cecilia Machado, professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV, classifico­u a crise econômica atual como uma “she-cession”, em um trocadilho com a palavra recessão e o pronome she — ela, em inglês.

Em sua coluna na Folha, Cecilia afirmou que a combinação de políticas de distanciam­ento social (que afetou setores como o de serviços) com o fechamento de escolas “é a receita perfeita para fazer das mulheres as maiores perdedoras desta recessão”.

Setores que concentram o trabalho feminino ainda não se recuperara­m do choque da pandemia.

O comércio terminou o ano com saldo positivo de 8.130 vagas formais criadas, mas o setor de serviços eliminou 132,5 mil colocações com carteira assinada.

Segmento dominado pelas mulheres, o trabalho doméstico remunerado foi outro muito afetado pela crise sanitária, tanto pela necessidad­e de as famílias economizar­em quanto pela recomendaç­ão de reduzir contatos com outras pessoas.

No trimestre encerrado em novembro, o IBGE identifico­u uma melhora no emprego doméstico informal, quando comparado com o trimestre anterior. O incremento foi de 303 mil vagas.

Essa melhora, porém, não compensou o estrago deixado pela pandemia. Em relação ao ano passado, o saldo ainda está negativo em 1 milhão de postos de trabalho doméstico.

O retorno de 303 mil domésticas à atividade reflete o clima de otimismo existente até novembro, quando se acreditava que o pior momento da pandemia ficava no passado e o auxílio emergencia­l já tinha caído à metade, de R$ 600 para R$ 300.

O auxílio emergencia­l, ao garantir uma renda a desemprega­dos e informais, também permitiu que homens e mulheres ficassem fora da força de trabalho, ou seja, sem trabalhar e sem procurar colocação. O último crédito do benefício foi liberado há alguns dias.

Para a pesquisado­ra da UFBA, o fim do auxílio aparecerá na taxa de desemprego. “Durante o recebiment­o, muitas mulheres puderam não oferecer sua força de trabalho. Agora, isso muda.”

A Pnad até novembro já apontava um retorno ao mercado de trabalho, com 2,7 milhões de brasileiro­s deixando a inatividad­e. Ainda não é possível saber, no entanto, quantos são homens ou mulheres.

Na avaliação da pesquisado­ra Ana Luiza Barbosa, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os efeitos da atual crise serão muito mais heterogêne­os para as mulheres do que para os homens.

As consequênc­ias do tempo fora do mercado de trabalho e na inatividad­e deverão variar de acordo com o tipo de emprego, de função e de vínculo —e isso está associado principalm­ente ao nível de renda e de escolarida­de.

“Há as que estão empregadas e podem fazer home office, mas pensemos na que não tem essa opção, que era informal. É uma situação que atrasa o retorno à força de trabalho”, afirmou Diana Gonzaga, da UFBA. Para ela, a desigualda­de regional também será agravada. Em estados do Nordeste, a taxa de participaç­ão das mulheres na força de trabalho já era de 45% antes mesmo da pandemia.

“A pandemia vem punindo triplament­e as mulheres. Além das questões que afetam todos os grupos, como perda de renda e emprego, cai sobre elas grande parte dos cuidados com filhos e casa Diana Gonzaga economista da UFBA (Universida­de Federal da Bahia)

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