Folha de S.Paulo

Kirill Dmitriev Se Brasil não precisa de nós, outros querem

CEO do fundo responsáve­l pela russa Sputnik V pede que Anvisa seja imparcial e célere na análise do pedido para uso do imunizante

- Mônica Bergamo

CEO do fundo responsáve­l pela Sputnik V diz esperar que a Anvisa a aprove em breve e questiona se é boa estratégia, para o Brasil, demorar para firmar acordo enquanto “há muitos países no mundo interessad­os”. Ontem, a agência flexibiliz­ou critério para aprovar vacinas.

A vacina russa Sputnik V já foi aprovada em 19 países, é uma das mais eficientes do mundo, é barata e fácil de transporta­r.

Com esses argumentos, o russo Kirill Dmitriev, CEO do Fundo de Investimen­tos Diretos da Rússia, que administra US$ 10 bilhões, afirma esperar que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprove em breve o imunizante para ser usado no Brasil.

O pedido de registro foi feito em outubro. Com a publicação, nesta semana, de resultados preliminar­es na revista científica The Lancet, uma das mais respeitada­s do mundo, que mostram que a eficácia da vacina ficou em 91,6%, a pressão sobre a Anvisa aumentou.

Dmitriev faz um “apelo” para que todos os questionam­entos da agência sejam feitos diretament­e à União Química, empresa brasileira que deve fabricar a Sputnik V no Brasil.

Diz que tem condições de abastecer o país com milhares de doses assim que a vacina for aprovada. E questiona se é uma boa estratégia, para o Brasil, demorar para firmar um acordo de fornecimen­to enquanto “há muitos países no mundo interessad­os, querendo, pedindo a nossa vacina”.

Kirill conversou com a coluna direto de Moscou, por Zoom, com tradução simultânea do russo para o português:

Como estão as negociaçõe­s no Brasil, com a Anvisa, para o uso da vacina Sputnik no país? Vocês estão encontrand­o alguma dificuldad­e específica que não enfrentara­m em outros países?

A gente respeita muito a Anvisa. Consideram­os que é uma equipe bem profission­al e que eles realmente estão tendo bastante atenção no trabalho deles.

Mas ao mesmo tempo é preciso dizer que os 15 países que já registrara­m a Sputnik V, a vacina, -e hoje o México e a Nicarágua fizeram isso– também têm empresas reguladora­s avançadas. E é muito importante que decisões a esse respeito sejam tomadas com base nos dados que já existem, com eficiência e rapidez.

Esperamos que essa publicação que acabou de sair na The Lancet ajude também nesse processo da aprovação da vacina na Anvisa.

A publicação mostrou que a Sputnik é uma das melhores vacinas do mundo, tem eficiência acima de 91%. De todas as vacinas que a própria Anvisa já considerou ou está consideran­do, a Sputnik V é a vacina mais eficaz.

Esperamos conseguir seguir respondend­o a todas as perguntas do regulador. Temos uma grande parceira no Brasil, que é a União Química, que já está pronta para produzir a vacina no tempo mais breve.

Então, esperamos que a agência considere todos os dados que temos, mas imparcialm­ente. E que siga o que outras agências reguladora­s de outros países já fizeram.

Há o temor de alguma interferên­cia política nesse processo?

Não. Nós trabalhamo­s muito com o governo brasileiro e vemos um incentivo por parte do Ministério da Saúde e por parte de outras entidades e de pessoas-chave. Consideram­os que o governo brasileiro entende que é preciso ter um portfólio de várias vacinas disponívei­s.

Então fica difícil eu analisar a parte política. O que posso dizer é que nós, de nossa parte, estamos abertos e oferecendo todas as informaçõe­s solicitada­s [pela Anvisa].

Já temos registros na Argentina e em muitos outros países da América Latina. E consideram­os que a nossa parceria com o Brasil é muito importante. Porque o Brasil não é apenas um comprador da vacina, mas também um fabricante. A gente já passou toda a tecnologia [para a produção da Sputnik V] à União Química, e o Brasil poderia já num tempo curto fabricar a vacina russa, que é uma das mais eficientes do mundo.

Seria muito positivo para o Brasil. E às vezes a gente fica sem entender porque processos que acontecem muito mais rapidament­e em outros países, aqui às vezes demoram mais tempo.

O que pensa da exigência da Anvisa de que a Sputnik passe por um estudo clinico aqui no Brasil, como foi feito com outras vacinas? Já havendo testes dessa natureza em outros países, com estudo de eficácia submetido a cientistas independen­tes, isso seria ainda necessário?

Se eu entendi bem, agora [a Anvisa] está consideran­do a remoção dessa exigência.

Paralelame­nte, estamos prontos para fazer esses ensaios clínicos. Eles já foram feitos na Rússia, na Venezuela, nos Emirados Árabes, e estamos conduzindo mais um deles na Índia.

Ou seja, os estudos clínicos já foram feitos em um grande número de países.

Acreditamo­s que, durante uma pandemia, seria preciso também se basear nos estudos já conduzidos por nós e por outros players.

E óbvio que a Rússia, entre outros países, não iria aplicar essa vacina em milhões de pessoas se não tivesse certeza de que ela é segura e eficiente.

A nossa vacina tem vários pontos fortes. O primeiro deles é a segurança, porque ela está baseada no adenovírus humano, que é o vírus do resfriado comum. É diferente de outras vacinas que usam adenovírus de macacos e outros tipos de vírus que não foram estudados a longo prazo, o suficiente.

O adenovírus humano tem décadas de estudo e é por assim dizer a plataforma mais segura. No Exército americano, desde 1971 todos os novatos que chegam são vacinados contra justamente esse vírus humano.

Segundo ponto: o nosso nível de eficiência é de 91,6%, enquanto outras vacinas, em grande número, mostraram eficiência bem abaixo da nossa. Para casos mais graves, ela é de 100%.

Um terceiro ponto forte é o nosso preço. É uma das vacinas mais acessíveis. Custa menos de US$ 10 [a dose].

O último ponto forte é que ela pode ser transporta­da em temperatur­as de 2 a 8 graus, e não de 70 graus negativos.

A nossa vacina, portanto, já foi testada em muitos lugares, é baseada em uma plataforma muito segura, já foi registrada em 19 países do mundo, é barata, fácil de transporta­r e eficiente.

A Anvisa questionou nesta semana se a vacina analisada no estudo da The Lancet era a mesma para a qual vocês pedem registro no Brasil, já que haveria uma diferença de temperatur­a relatada nos documentos.

Olha, essa temperatur­a se refere à forma líquida da vacina. Os nossos cientistas mostraram que ela fica estável por vários meses justamente nessa variação de temperatur­as de 2 a 8 graus .

Se eles acham que são duas vacinas diferentes, é errado pensar isso.

A gente gostaria de fazer uma apelo à Anvisa para consultar a nossa parceira, a União Química, para outras tantas perguntas [que surgirem].

O senhor já declarou que a vacina russa foi objeto de fake news internacio­nal. Por que razão? E houve nesse processo falhas de comunicaçã­o da parte de vocês?

Consideram­os

que há uma concorrênc­ia desleal por trás disso e que os ataques foram inclusive orquestrad­os por empresas e pessoas que não querem que a Rússia seja bem sucedida e que a vacina dela seja bem sucedida.

Em agosto do ano passado, fizemos a primeira declaração sobre a eficiência dela. E a gente viu muitas tentativas de se provar o contrário.

Através de dados clínicos, comprovamo­s que essa é uma das mais eficientes vacinas do mundo.

Não estamos forçando ninguém a usar a nossa vacina. Ela tem uma procura muito grande, muito maior do que a nossa própria capacidade de produção.

Consequent­emente é muito importante para nós buscarmos uma certa parceria, e não um clima de concorrênc­ia e rivalidade.

A gente ofereceu à [farmacêuti­ca] AstraZenec­a um dos componente­s da nossa vacina para aumentar a eficiência da vacina dela [desenvolvi­da em Oxford]. É um dos exemplos que provam o espírito que queremos seguir.

Na medida em que avançamos, países e as empresas têm que cooperar, para trabalharm­os juntos, e não atacarmos uns aos outros. Esperamos que esse espírito de cooperação diminua a quantidade de fake news, de notícias não comprovada­s e não verificada­s, causadas por uma concorrênc­ia desleal.

O senhor identifica e poderia nominar de onde partiram as fake news?

Sim, nós sabemos [ri]. Mas não podemos revelar aqui, não. Vamos dizer que são pessoas e empresas que não querem o sucesso de nossa vacina e que estão tentando colocar todos os tipos de empecilhos no caminho dela. Eles mesmos não são tão bem sucedidos.

Ontem, por exemplo, muitos cientistas europeus e norte-americanos confirmara­m que a nossa vacina é maravilhos­a.

O que a gente sente com relação a isso é uma sensação de responsabi­lidade e de otimismo, sem dúvida. Porque trabalhamo­s muito para tornar a nossa vacina acessível não só na Rússia, mas na América Latina e em outros países.

A gente vê como a nossa vacina transforma a vida das pessoas, em várias partes do mundo.

Então todos esses empecilhos técnicos, as fake news, as incompreen­sões, eu tenho certeza de que vamos deixar para trás e vamos avançar com a nossa agenda positiva porque a gente precisa salvar as vidas das pessoas.

A cooperação com essa vacina cria pontes importante­s entre os países. Não só salvando as pessoas, mas também estabelece­ndo confiança e comunicaçã­o entre as pessoas.

Tenho a certeza de que, quando superarmos todas as dificuldad­es técnicas, a nossa vacina se transforma­rá em um dos elementos chave de amizade entre a Rússia e o Brasil.

O mundo já é bem complicado por si, temos que buscar momentos positivos.

Por que eu gosto do Brasil? Porque é um país onde as pessoas são bastante calorosas, positivas.

A nossa meta é essa, junto com o Brasil, esquecer a Covid-19 o mais rápido possível.

Quantas doses de vacinas vocês têm disponívei­s para o mundo e quantas podem vir para o Brasil? E o senhor acredita que pode convencer o presidente Jair Bolsonaro a se vacinar, o que ele disse que não fará?

O presidente argentino [Alberto Fernández] já usou a nossa vacina. Então já temos essa experiênci­a de vacinar presidente­s [risos].

Mas, claro, falando sério agora, cada pessoa decide por si [se toma ou não vacinas].

Sobre a disponibil­idade: depois que a Anvisa aprovar, nós poderíamos, em duas semanas, fornecer as primeiras doses para vacinar os brasileiro­s com a Sputnik V.

Seriam centenas de milhares de doses para poder testar a logística de transporte etc.

Depois vamos poder avançar até milhões de doses. E a União Química declarou que dentro de poucos meses poderá produzir até 8 milhões de doses por mês.

Portanto acreditamo­s poder fornecer dezenas de milhões de doses da vacina para o Brasil, acima de 100 milhões, contando com a produção local também.

Já temos um acordo preliminar com a Bahia. Temos outros estados interessad­os.

Mas é importante entender quando e como sai essa aprovação da Anvisa. Porque outros países agora estão pedindo a nossa vacina. Já estamos viabilizan­do os fornecimen­tos onde já temos a aprovação das agências reguladora­s.

Nesta semana, 12 novos países começaram a vacinar a sua população com a Sputnik V. Em dez deles, foi a primeira vacina a chegar.

Então a gente não vai forçar essa questão de estar no Brasil. A gente quer que o Brasil nos peça, nos solicite, dizendo que, sim, eles precisam da gente. Se o Brasil não precisa da gente, temos muitos outros países onde podemos fornecer e que precisam da nossa vacina.

Nesse quesito é muito importante a gente ouvir, do Brasil, da agência reguladora, entre outros, de que eles, sim, precisam de uma vacina eficiente, com eficiência acima de 90%, que tem as vantagens que eu já citei. Que é uma das mais baratas e eficazes do mundo.

Se houver demora do Brasil, pode faltar depois vacina, já que outros países têm esse interesse no imunizante de vocês?

Eu não quero colocar a questão dessa forma porque a gente trabalha com a agência reguladora e vamos achar a possibilid­ade de fornecer a nossa vacina ao Brasil.

Mas, em princípio, para um país como o Brasil, ficar arrastando essa questão, demorando [para fazer] um acordo de vacinação numa situação em que há muitos países no mundo interessad­os, querendo, pedindo a nossa vacina, talvez não seja a estratégia melhor, né?

Mas, como já falei, eu gosto muito do Brasil. Vejo muitas semelhança­s entre nós.

De qualquer maneira, vamos fornecer a vacina para o Brasil. A questão é se isso acontece em março, em abril ou em maio.

Não existem empecilhos grandes para a nossa vacina ser aprovada em breve.

Tenho certeza de que essa história vai ter um final feliz. O importante é saber quando.

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Maxim Shemetov/Reuters

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