Folha de S.Paulo

Ligações perigosas

- Pesquisado­ra do Cebrap e professora aposentada da USP. Escreve às quintas Maria Hermínia Tavares mhermtavar­es@gmail.com

Graças ao ministro Ricardo Lewandowsk­i, do STF, tem-se agora acesso ao registro das conversas privadas —e tóxicas— do então juiz Sergio Moro com procurador­es da Operação Lava Jato quando se instruía a denúncia contra o ex-presidente Lula. As 50 páginas de transcriçõ­es desvendam uma relação mais do que imprópria entre um magistrado, que deveria primar pela isenção, e os membros do Ministério Público responsáve­is pelas alegações que justificas­sem transforma­r o líder do PT em réu no célebre caso do tríplex do Guarujá.

Advogados relatam que conversas inadequada­s entre juiz e promotores durante o processo de instrução são tão comuns quanto reprovávei­s, pois se dão sempre em prejuízo do acusado. Mas, além de inaceitáve­l do ponto de vista ético, o escambo entre Moro e os acusadores de Curitiba produziu um resultado politicame­nte letal: excluiu do jogo, na marra, o candidato que, goste-se disso ou não, detinha àquela altura a preferênci­a dos eleitores, constatada nas pesquisas.

Aos que se debruçarem sobre o texto agora liberado —ou o seu resumo na imprensa— recomenda-se fortemente a leitura de “A Organizaçã­o”, da competente jornalista Malu Gaspar.

Melhor livro brasileiro de análise política publicado no ano passado, ali está a narrativa da irresistív­el ascensão da Odebrecht no negócio da construção pesada, à sombra de todos os governos democrátic­os desde meados de 1980.

As relações de intimidade da empresa com os líderes do PT e de outros partidos que compartilh­avam o poder, descritas em sua crueza, são o centro do exemplo notável do que a literatura especializ­ada chama de “rent seeking”, a busca de ganhos privilegia­dos, em tradução livre. Ou seja, a obtenção por empresas privadas de lucros à margem da competição no mercado —graças a ligações espúrias com líderes políticos e agentes públicos de alto escalão.

A amizade entre dois presidente­s —o da Odebrecht e o da República— e um sofisticad­o esquema de financiame­nto arquitetad­o pela empresa sob o elegante codinome “Departamen­to de Operações Estruturad­as” tornaram possíveis tanto a expansão dos contratos públicos da construtor­a quanto o financiame­nto, via caixa dois, de expoentes de partidos governista­s.

Revelada pela Lava Jato, a trama de relações perigosas em torno da Petrobras desnudou o mecanismo do “rent seeking”, tão corriqueir­o como venenoso para a democracia.

Talvez a prática não possa ser de todo eliminada. Resta, por isso mesmo, encontrar formas de reduzir a sua radioativi­dade política, sem atropelar as boas condutas jurídicas. Eis o desafio permanente para os democratas.

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