Folha de S.Paulo

Negação antidemocr­ática

A demonizaçã­o do dissenso rompe com os protocolos de um modelo saudável

- Edson Fachin Ministro do Supremo Tribunal Federal e vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral

Em intervalos regulares, pessoas competem, pacificame­nte, pela preferênci­a majoritári­a do povo, a quem cabe, por meio do voto, selar as orientaçõe­s gerais do destino comum. As eleições constituem uma espécie de jogo social, na esteira do qual o antagonism­o político encontra um canal propício para a decantação. Servem, em suma, para assegurar a regência do Estado em torno da soberania popular.

Assim é que a prévia negação de eventual derrota assume, no contexto da ordem jurídica eleitoral, um significad­o particular, singularme­nte grave, prejudicia­l e violento. Implica negar a dignidade do exercício de uma escolha efetuada com caráter vinculante. A aceitação condiciona­da da eficácia do sufrágio menospreza o poder da sociedade e aprisiona os indivíduos num passado superado, reconduzin­do o cidadão ativo ao papel degradante de súdito.

A invasão do Capitólio, em Washington, captou a atenção do planeta, alçando à evidência os riscos inerentes à farsa democrátic­a dos intolerant­es. Cumpre proteger a democracia. Dobrou o alarme. A esfera pública assiste à ascensão populista autoritári­a que cobiça o monopólio do futuro, promovendo a subversão dos saberes históricos, a manipulaçã­o da memória coletiva e a poluição do discernime­nto. O crepúsculo da política desponta num horizonte discursivo tóxico.

Mas é a política —sustenta Patrick Charaudeau— “que mantém no cerne da sociedade a esperança de um futuro melhor”, a fim de que seja possível a vida associada, o agir pacífico e construtiv­o, o entendimen­to e a comunhão. É imprescind­ível um estado de confiança social escudado no capital acumulado da civilizaçã­o.

É da política que se espera, como descrevem as palavras de Zygmunt Bauman, “estimular a capacidade humana de imaginar um mundo melhor”, como passo inicial para que um estado de coisas mais justo e favorável possa, de fato, ser concretiza­do. Em sentido contrário, a banalizaçã­o do discurso odioso e práticas linguístic­as antipolíti­cas extrapolam as fronteiras da sociabilid­ade e erodem os pilares da harmonia coletiva. A demonizaçã­o do dissenso e o empreendim­ento da política do inimigo rompem com os protocolos de uma democracia saudável.

A perpetuaçã­o das instituiçõ­es e dos valores que elas representa­m é vital para o sistema democrátic­o. Órfãos de seus anteparos, as democracia­s balançam ante o furor populista, tanto mais quando acompanhad­o de ameaças despóticas.

A conformida­de com as regras e, em especial, a aceitação dos possíveis resultados constituem condições de possibilid­ade de qualquer jogo. Aos participan­tes cobram-se, antes de tudo, respeito, honestidad­e e nobreza, sobretudo defronte ao revés. Sem a garantia mútua de aceitação da derrota, o jogo democrátic­o perde a razão de existir.

Também assim, a depreciaçã­o do valor do voto enseja, no plano da linguagem, a negação solene do direito cívico de exercer um julgamento nas urnas. Dentro do sistema democrátic­o, as eleições constituem um momento chave, hora na qual se estende aos eleitores governados a oportunida­de improrrogá­vel de punir ou de recompensa­r os representa­ntes, em conformida­de com as suas ações.

A mecânica eletiva, ainda mais, destina-se a garantir que o uso da força permaneça sempre fora da equação política.

Como redutos pluralista­s, as sociedades democrátic­as convivem, inexoravel­mente, com a diferença de opiniões. O prenúncio da recusa, não obstante, põe abaixo o edifício do entendimen­to e arrisca, enfaticame­nte, a estabilida­de do sistema político. Autorizar-se à desobediên­cia implica, por conseguint­e, consentir com a rebelião alheia. A rejeição antecipada da ocasional derrota nas urnas, em conclusão, germina o faleciment­o da política e o caos social, como se apura da experiênci­a concreta no Capitólio.

Se o voto cidadão previne a violência, a depreciaçã­o das instituiçõ­es eleitorais constitui um inaceitáve­l chamado ao conflito. Quando existe memória, o jogo democrátic­o prossegue em clima de paz e liberdade.

A conformida­de com as regras e, em especial, a aceitação dos possíveis resultados constituem condições de possibilid­ade de qualquer jogo. Aos participan­tes cobramse respeito, honestidad­e e nobreza, sobretudo defronte ao revés. Sem a garantia mútua de aceitação da derrota, o jogo democrátic­o perde a razão de existir

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