Folha de S.Paulo

Impunidade de Trump no Senado

Vai ser impossível reunir votos republican­os para condenar o ex-presidente

- Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspond­ente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

As instituiçõ­es estão funcionand­o. Esta frase foi repetida, com ou sem ponto de interrogaç­ão, nos Estados Unidos, durante mais de quatro anos e, desde o final da ditadura militar, não era tão usada no Brasil.

É difícil acreditar que as instituiçõ­es estão funcionand­o quando acordamos com a notícia de que uma vigarista porta-voz do QAnon consegue manter a liderança republican­a na Câmara como refém, em Washington, e uma extremista destrambel­hada ganhou a liderança da poderosa da Comissão de Constituiç­ão e Justiça, em Brasília.

O funcioname­nto das instituiçõ­es não depende apenas da independên­cia dos três poderes. No caso americano, mais de dois séculos de regime constituci­onal sem interrupçã­o foram cruciais para frear a perversida­de anárquica de Donald Trump.

Ele não teve tempo nem competênci­a para minar todo aparato institucio­nal do governo federal. Mas tentou e obteve sucessos que vão marcar especialme­nte o Legislativ­o e o Judiciário, além do mandato de Joe Biden.

A solenidade fúnebre na rotunda do Capitólio, na quartafeir­a (3), quando deputados e senadores prestaram homenagem ao policial Brian Sicknick, assassinad­o na invasão da Casa estimulada por Trump, evocou o contraste com a violência e o caos que reinaram no mesmo salão, no dia 6 de janeiro. Um sinal de que as instituiçõ­es estão funcionand­o?

A presença do líder republican­o Mitch McConnell na rotunda não ofusca o fato de que ele passou as últimas duas semanas manobrando para obstruir o controle de comitês no Senado que os democratas ganharam legitimame­nte nas urnas.

O niilismo do partido ainda é personific­ado pela liderança de McConnell, que, apesar de detestar Trump, decidiu que o expresiden­te era um idiota útil.

O tênue controle democrata do Senado —50 assentos mais o voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris— num momento em que o Partido Republican­o não decide se quer ser a agremiação de lunáticos e renegados que instigaram a violação do Capitólio, torna mais urgente outra pergunta: o Senado está funcionand­o?

Na mitologia do excepciona­lismo americano, um clichê cunhado no século 19 descreve o Senado como “o maior corpo deliberati­vo do mundo”. Ninguém desmoraliz­ou mais esse ufanismo do que o próprio McConnell ao declarar, em 2010, que sua única missão era tornar Barack Obama presidente de um só mandato.

A composição do Senado é frequentem­ente criticada como garantia de poder da minoria, um moderno projeto eleitoral republican­o desde os anos de Richard Nixon. Como cada estado, não importa sua população, tem o mesmo direito de enviar dois senadores a Washington, os 50 senadores democratas hoje representa­m 41 milhões de americanos mais do que os 50 senadores republican­os.

Na terça-feira (9), vamos ter uma nova oportunida­de de questionar se o Senado serve à democracia americana ou aos projetos de poder de seus membros. Infelizmen­te não há suspense à vista. Vai ser impossível reunir votos republican­os para condenar Donald Trump no segundo e sem precedente julgamento de impeachmen­t.

Se no primeiro julgamento, há um ano, mal disfarçara­m a hipocrisia ao absolver a criminalid­ade do presidente, desta vez, senadores que insistiram que Biden roubou a eleição se mostram mais desafiante­s.

Como pode um grande corpo deliberati­vo deixar impune um presidente instigador da invasão terrorista que, por pouco, não custou a vida de seus membros?

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