Coincidência, não política, ajudou vacina russa, diz promotor
são paulo Para o responsável pela oferta da Sputnik V ao Brasil, Rogério Rosso, foi um fato aleatório, a existência de uma fábrica com equipamentos iguais aos usados para fazer o imunizante, que aproximou a vacina russa do país —e não seu trânsito político.
Com o interesse do governo de Jair Bolsonaro pela vacina e a mudança de regra da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) permitindo a adoção sem ensaios de fase 3 (finais) no país, virou moeda corrente em Brasília que enfim havia chegado a “vacina do centrão”.
A referência ao grupo político que sustenta o governo e ganhou a presidência da Câmara logo bateu em Rosso, que era próximo do cacique Eduardo Cunha e foi deputado pelo PSD, partido que não integra, mas está na mesma faixa do centrão.
Foi governador-tampão do Distrito Federal (2010-11) e presidiu a comissão que aprovou o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016.
Diretor de Negócios Internacionais da União Química, farmacêutica paulista que é parceira do governo russo, Rosso nega a associação. “A vacina é boa e tivemos uma grande coincidência em nosso favor.”
O primeiro ponto teve a chancela da respeitada publicação britânica The Lancet, que publicou na terça (2) o estudo de fase 3 da vacina fabricada pelo Instituto Gamaleya e a apontou como segura e com eficácia de 91,6%.
O segundo é uma anedota pouco conhecida. Rosso foi derrotado na disputa pelo governo do Distrito Federal pelo PSD em 2018 e resolveu voltar ao setor privado. Foi contratado pela União Química para desenvolver uma estratégia internacional.
“Visitei mais de 15 países desde que comecei, em março de 2019. Um deles foi a Rússia, onde queríamos montar uma rede para nossos produtos veterinários”, afirmou. Foram apresentadas as sete fábricas da empresa, inclusive
Instalação de fábrica no DF da União Química, laboratório brasileiro que fechou acordo com o governo russo para produção da Sputnik V o novo centro fabril de biotecnologia em Brasília, aberto em 2017.
“Quando veio a pandemia, lá para abril de 2020, o governo russo entrou em contato conosco. Tínhamos na fábrica de Brasília já pronta equipamentos idênticos aos do Gamaleya para produzir a vacina localmente. Era só uma questão de mudar parâmetros das máquinas, é uma chamada fábrica flex”, disse.
Daí veio o acerto com os russos, por meio do hiperativo Kirill Dmitriev, o presidente do fundo soberano do país que bancou a Sputnik V e a promove como mascate pelo mundo —18 países já a autorizaram emergencialmente.
A fábrica já está em operação piloto, para testes, de produção do IFA (Insumo Farmacêutico Ativo), a matéria-prima da Sputnik V. Se tiver uso aprovado, será a primeira do país a fazê-lo, antes do Instituto Butantan e sua Coronavac ou da Fiocruz com a vacina da AstraZeneca/Universidade de Oxford.
A diferença é de escala. Se for aprovada, sua produção em plena capacidade é de 8 milhões de doses por mês, bem menos que as rivais.
Não são descartados, contudo, planos de expansão em caso de aumento de demanda. A Rússia tem acordos semelhantes de produção local na Índia e na Coreia do Sul.
Assim como os tradicionais institutos do Rio e São Paulo, a União Química conta com a entrega de doses prontas para formulação da Sputnik também. Dmitriev prometeu, caso saia a aprovação, 10 milhões até março e até 150 milhões no ano, número que parece otimista dada as dificuldades de produção na Rússia.
No Brasil, as dúvidas eram múltiplas. Primeiro, pela presença de um nome com densidade política como Rosso na negociação. Segundo, porque havia resistência internas na Anvisa ao imunizante.
As primeiras trocas de mensagens entre o Gamaleya, que é quem faz o pedido oficialmente, foram desalentadoras para os russos.
Segundo a reportagem ouviu de pessoas com acesso à negociação em Moscou, tudo era rejeitado liminarmente, inclusive dados que agora foram chancelados pela revista britânica The Lancet.
Houve contrariedade quando a Anvisa disse que havia rejeitado o pedido de uso emergencial justamente pela questão da fase 3. Os russos disseram que apenas iriam mandar mais documentos.
Outro ponto era a própria União Química, empresa sem tradição alguma na área de vacinas humanas, área dominada pelo Butantan e pela Fiocruz. Fundada em 1936, ela faturou R$ 2,7 bilhões em 2020 e tem 7.000 funcionários.