Folha de S.Paulo

Linguistic­amente

Senso comum ainda resiste ao peixe fresco que a linguístic­a vende

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

A linguístic­a, nascida no século 19 e amadurecid­a no 20, revolucion­ou o mapa do nosso entendimen­to sobre as línguas. Até então a cartografi­a do verbo tinha duas estradas principais, a normativis­ta e a enciclopéd­ica.

O normativis­mo é, como diria o Chico, “bedel e também juiz”. Dita regras de bom uso do idioma, pautadas num distante ideal fixado por escritores clássicos, e fica bravo se discordamo­s. É o que costuma cair em provas, muitas vezes na forma de ridículas pegadinhas.

O maior símbolo dessa visão que divide o mundo em certo e errado é aquele tijolo temido pelos estudantes do meu tempo, a gramática normativa.

Até hoje o normativis­mo pauta o senso comum. “Português é tão difícil! A língua está decadente! Será que pode escrever assim?”

O encicloped­ismo é menos carrancudo. Como um colecionad­or de borboletas, espeta expressões —com destaque para as pitorescas— em compridos murais de cortiça que formam corredores a perder de vista.

Tem como símbolo um tijolo maior ainda, o dicionário, que hoje já quase ninguém tira da estante porque funciona melhor online.

A linguístic­a abriu uma terceira via nesse mapa, rumo a amplas regiões inexplorad­as —a do olhar científico aplicado à língua.

Um linguista não está interessad­o em como a língua deveria ser nem na catalogaçã­o de palavras em sua quase infinita variedade.

O que deseja saber é como essa poderosa máquina de fazer sentido, moeda simbólica de toda sociedade humana, se estrutura e se manifesta.

Trata-se de uma ideia simples, indiscutív­el até. A língua existe na vida real, material, fora do âmbito de nossos desejos, e está condiciona­da apenas à história.

O que podemos fazer por ela vai muito além do beletrismo militante e da obsessão colecionis­ta —tentar compreende­r como funciona. O afluxo de estudiosos para as estradas normativa e enciclopéd­ica caiu muito desde então.

Por algum tempo, a descrição dos fascinante­s mecanismos internos das línguas ocupou as melhores atenções dos linguistas. Mas essa autoestrad­a tinha muitas pistas, cada uma delas dando em novas ramificaçõ­es.

Inaugurada nos anos 1960 e de presença ainda vigorosa nas faculdades de letras brasileira­s, a sociolingu­ística se ocupa do que se passa não dentro da língua, mas na fronteira entre ela e a sociedade.

Aponta por exemplo um fato que, num país tão violentame­nte desigual como o Brasil, é luz nas trevas: que quem fala “nós vai” não o faz por ser menos capaz ou inteligent­e do que quem fala “nós vamos”.

Trata-se de duas gramáticas igualmente funcionais. A distinção de prestígio entre elas —devida a fatores socioeconô­micos, exteriores à língua— é usada para reforçar e replicar mecanismos sociais de inclusão e exclusão.

O senso comum ainda torce o nariz para o peixe fresco que a linguístic­a tenta lhe vender. Para a maioria dos falantes leigos, discorrer sobre a língua é uma completa perda de tempo, com duas exceções.

Há grande interesse em dicas para não errar, não contrariar as patrulhas normativas. E um razoável interesse em curiosidad­es e histórias divertidas —ainda que falsas— em torno das palavras.

Ou seja: após mais de um século de linguístic­a na veia dos estudos sobre a língua, é para as velhas estradas normativa e enciclopéd­ica que o grande público continua a afluir.

Que descompass­o é esse? Serão os linguistas ruins de comunicaçã­o ou será que outros fatores entram na conta? Continuo na semana que vem.

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