Folha de S.Paulo

Não Por que não querem ser 100% policiais?

O projeto de lei que dá mais autonomia às Polícias Militares é adequado?

- Raul Jungmann e José Vicente da Silva Filho Ex-ministro da Reforma Agrária (1996-2002; governo FHC), Defesa e Segurança Pública (2016-18 e 2018; governo Temer) Coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo, é ex-secretário nacional da Segurança Públic

Quando os comandante­s das PMs iniciaram a preparação do projeto, esperava-se que produzisse­m um documento apontando os caminhos de uma polícia para o futuro. Mas não foi o que aconteceu: a palavra ‘policiamen­to’ aparece três vezes no texto. ‘Polícia’ foi grafada 17 vezes, mas a palavra ‘militar’ aparece em 274 oportunida­des

Não há lógica que polícias tenham insistente simetria com as Forças Armadas “A organizaçã­o policial deve ser modificada para o exercício efetivo da função preventiva, ao invés de esperar que os fatos se ajustem à sua organizaçã­o atual.” David Bayley Especialis­ta em estudos policiais

Polícia alguma tem ou pode ter a autonomia administra­tiva, financeira e funcional pretendida no projeto de lei orgânica das Polícias Militares.

A sociedade concede ao Estado a exclusivid­ade do uso legal da força através de seu aparato policial que, no limite, pode matar. O controle primário das instituiçõ­es policiais deve ser exercido pelo governador, através de instrument­os universais como designação de seus responsáve­is, promoções estratégic­as, parâmetros de organizaçã­o, condiciona­ntes da gestão financeira, monitorame­nto da legalidade e ética das ações e da efetividad­e na prevenção dos crimes. E, com o potencial de crises do setor de segurança pública, que costumam cair no colo dos governador­es, intervençõ­es emergencia­is, como a troca de comandos, devem fazer parte do arsenal de controle das polícias.

O projeto de lei orgânica, contudo, pretende autonomia ampla, impondo aos governador­es lista tríplice para a designação dos comandante­s, com status de secretário de Estado, mandato de dois anos e destituiçã­o autorizada apenas por “motivo relevante devidament­e justificad­o”.

É necessário que as polícias brasileira­s tenham uma lei que regule “a organizaçã­o e o funcioname­nto dos órgãos responsáve­is pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades”, conforme prevê o parágrafo 7º do artigo 144 da Constituiç­ão. Mas, passados 32 anos, nada foi feito, e as Polícias Militares ainda são reguladas, incrivelme­nte, pelo decreto-lei nº 667, de 1969, auge do governo militar.

Mesmo com as deficiênci­as atuais, ocorreram evoluções significat­ivas nas PMs, principalm­ente a partir da eleição de governador­es em 1982, como a implantaçã­o da polícia comunitári­a, preparo para atuar em crises públicas, maior atenção às demandas sociais por padrões de contenção do uso da força e aos direitos humanos e melhoria em gestão e no desenvolvi­mento de tecnologia­s.

Quando os comandante­s das PMs iniciaram a preparação do projeto de lei orgânica, com entidades representa­tivas e parlamenta­res oriundos dessas forças, esperava-se que produzisse­m um documento apontando os caminhos de uma polícia para o futuro, altamente profission­al e organizada para produzir o melhor resultado em sua atividade essencial, o policiamen­to. Mas não foi o que aconteceu: a palavra “policiamen­to” aparece três vezes nas mais de 11 mil palavras do texto. “Polícia” foi grafada 17 vezes, mas a palavra “militar” aparece em 274 oportunida­des —o que mostra não só um claro retrocesso institucio­nal, mas um conflito quanto à definição de sua identidade institucio­nal.

Por um lado, reforçam o militarism­o com a referência insistente de simetria às Forças Armadas e até com a extravagan­te criação de três níveis de generais; por outro, exigem diploma de direito para seus oficiais e salientam que suas funções são atividades jurídicas.

Como assim? Ora, um fundamento elementar das organizaçõ­es, sejam públicas ou privadas, é que suas estruturas e processos funcionais devem se adequar às suas missões precípuas —e, assim sendo, não há lógica que polícias tenham simetria com o Exército ou a Força Aérea. Com as Polícias Civis reivindica­ndo status de atividade jurídica e policiais militares pretendend­o ser mais militares que policiais, quem vai ser policial para valer?

Por que renegam a relevância do papel da polícia na sociedade e o orgulho de serem, pura e simplesmen­te, policiais, sem tomar carona em outras instituiçõ­es?

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil