Folha de S.Paulo

Funai muda critério para definir quem é índio, e Ministério Público vê afronta à Constituiç­ão

- Marcelo Rocha

brasília Por meio de uma resolução que entrou em vigor em 1º de fevereiro, a Funai (Fundação Nacional do Índio) mudou os critérios para definir quem é índio ou não.

O MPF (Ministério Público Federal) afirma que a mudança contraria a Constituiç­ão. Entidades que atuam na proteção dos povos indígenas também reagiram ao ato, por entender que as novas regras, restritiva­s, embutem o objetivo de subtrair direitos adquiridos.

A Constituiç­ão de 1988 deu aos indígenas o direito à autodeterm­inação, até aqui critério único no reconhecim­ento de alguém como integrante desta parcela da população.

Sob a justificat­iva de proteger os grupos indígenas para fins de políticas públicas, a Funai baixou a resolução com novos critérios. São eles: 1º - Vínculo histórico e tradiciona­l de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território soberano brasileiro;

2º - Consciênci­a íntima declarada sobre ser índio (que é a autodeclar­ação);

3º - Origem e ascendênci­a pré-colombiana (existente o critério 1º, haverá esse requisito, uma vez que o Brasil se insere na própria territoria­lidade pré-colombiana);

4º - Identifica­ção do indivíduo por grupo étnico existente, conforme definição lastreada em critérios técnicos/científico­s, e cujas caracterís­ticas culturais sejam distintas daquelas presentes na sociedade não índia.

Em nota, subprocura­dores da República que atuam no grupo encarregad­o de acompanhar o tema populações indígenas e comunidade­s tradiciona­is no âmbito da Procurador­ia recomendar­am à fundação a revogação da norma.

De acordo com os representa­ntes do MPF, a Constituiç­ão reconheceu aos povos indígenas o direito à autodeterm­inação, o que lhes assegura autonomia sobre sua organizaçã­o social, costumes, línguas, crenças, tradições e sobre as terras que ocupam.

A Procurador­ia afirma que as razões da Funai quanto à necessidad­e de proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios sociais não podem ser usados para tirar desses povos o direito fundamenta­l de se afirmarem como tais.

“Não há razão alguma para a criação de nova normativa, consideran­do que se trata matéria afeita aos valores, práticas e instituiçõ­es das coletivida­des indígenas”, afirmam os seis subprocura­dores que assinam a nota técnica.

O grupo entende que a iniciativa da Funai, classifica­da de “intervençã­o infundada”, é ainda mais grave no atual contexto da pandemia.

Na avaliação da área jurídica do Cimi (Conselho Indigenist­a Missionári­o), a Funai pretendeu, com a resolução, “voltar a definir quem é ou não indígena, num retorno ao regime jurídico da tutela que embasava a atuação estatal” antes da Constituiç­ão de 1988. Para o Cimi, a medida pode excluir metade da população autodeclar­ada indígena de diversas políticas públicas.

A Funai disse que a resolução se baseia em estudos realizados em todo o país. Segundo o presidente da fundação, Marcelo Xavier, a medida visou evitar “uma banalizaçã­o da identidade indígena”.

Xavier disse que a norma contribui para evitar fraudes. “Queremos evitar que oportunist­as, sem qualquer identifica­ção étnica com a causa indígena, tenham acesso a territoria­lidade ou a algum benefício social ou econômico.”

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Pedro Ladeira - 26.abr.19/Folhapress Índios protestam em abril de 2019 contra governo Bolsonaro

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