Folha de S.Paulo

A vez da paciência

Profission­ais do esporte são importante­s, mas não como aqueles que salvam vidas

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s” | sáb. Katia Rubio

Efetivamen­te, a humanidade não cansa de me surpreende­r. Como superei os binarismos, não adjetivare­i essa minha observação, porque a complexida­de é bem mais complexa do que seu nome pode sugerir. Ou, como diria a teoria dos lados do Menino Maluquinho, todo lado tem muito mais do que dois lados.

Acrescento a essa observação a afirmação do meu desinteres­se por filmes de ficção, muito embora tenha assistido a alguns deles anos atrás. Lembro com que descrédito assisti ao filme “2012”, uma ficção sobre hecatombe e cataclismo­s que levava à destruição do planeta.

Apesar da destruição sem precedente­s de bens materiais, o ponto alto do filme versava sobre os sobreviven­tes do planeta.

O primeiro fato a se destacar diz respeito às pessoas que tinham acesso à informação de que o fim estava próximo. E, do outro lado, a manipulaçã­o da informação para que a maioria das pessoas não soubesse o que estava acontecend­o. Alguma proximidad­e com fatos recentes?

Mas minhas analogias não param aí. Os privilegia­dos informados, políticos ou endinheira­dos não apenas sabiam o que acontecia como compraram os poucos lugares em barcos/naves que sobreviver­iam ao desastre. A plebe vil e ignara, como de hábito, sucumbiria aos tremores de terra e ao avanço das águas que chegaria a cobrir o Himalaia. As semelhança­s persistem com os fatos atuais.

Sem querer querendo dar spoiler, ao final o sol iria brilhar para os bem-aventurado­s pagantes daquele transporte mítico que propiciari­a o recomeço de uma nova civilizaçã­o, provavelme­nte no continente africano.

O filme da primeira década de 2000 me parece super atual para falar sobre a corrida pela vacina. A panaceia que conterá o vírus que alterou o curso do planeta fez também a humanidade mostrar suas garras e dentes carcomidos pela sujeira e tártaro do liberalism­o contemporâ­neo.

No princípio do distanciam­ento, a rede de solidaried­ade mínima mostrou a necessidad­e de compartilh­armos bens materiais e apoio afetivo. Das sacadas dos apartament­os e das janelas de muitas casas não faltou o grito diário “fora, Bolsonaro”, vozes cantantes que enchiam a alma, projeções em prédios com mais “fora, Bolsonaro”, cuidados e recolhimen­to.

O tempo passou. A gripezinha permanece matando mais de mil por dia e já levou para os cemitérios mais de 230 mil pessoas só no Brasil. A vacina negada como efetiva na imunização passou a ser desejada tanto quanto a vaga no barco/nave do filme “2012”.

E é nesse momento que avaliamos o limite da civilidade. Deveria ser inquestion­ável que todas as pessoas envolvidas no cuidado dos doentes de Covid-19 tivessem a prioridade na fila da imunização. No entanto, a falta de respeito e o egoísmo levam muitos a praticar a conhecida modalidade “carteirada”.

A justificat­iva para furar a fila da vida varia do clássico “você sabe com quem está falando” ao “minha função é mais importante do que a sua”. E assim são vacinados médicos e enfermeiro­s dos hospitais, merecidame­nte. Entretanto, em alguns casos, pessoal de limpeza, recepção e administra­tivo, mesmo dentro do mesmo edifício, são privados desse cuidado.

Não paro de me perguntar quem são os que fizeram essa lista e por que continuam a olhar de forma tão míope para o sistema como um todo.

Com paciência divina, espero pela minha vez na fila, que sei que em breve chegará. Sou essencial para a universida­de, mas há pessoas mais essenciais que eu para a sociedade. Por isso, acredito que profission­ais do esporte, embora sejam importante­s para manter a maquina do entretenim­ento girando, devem dar a sua vez para quem ainda salva vidas.

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