Partitura em braille enche o coração de esperança
Quando um músico que enxerga decide tocar algo do repertório clássico, provavelmente ele leva menos de cinco minutos para encontrar a partitura que deseja na internet e estar com ela impressa nas mãos. Para quem usa partituras em braille, a história é bastante diferente.
Mesmo eu sabendo o básico sobre esse código de escrita, duvidava que seria possível encontrar material para estudo nesse formato. Resignado, quando entendi que a perda gradual de visão me impediria de seguir lendo partituras impressas em tinta, pendurei o diploma em música e fiquei por anos sem estudar piano.
Há seis meses, ouvi uma entrevista com a pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha que me mostrou que eu estava errado. Ela, que é cega, contava sobre o repertório que construiu ao longo dos anos, sempre usando partituras em braille. Inspirado por seu depoimento, entrei em contato e, dias depois, ela se tornou minha professora.
Após muito estudo e já familiarizado com os principais sinais para indicar notas e suas durações, chegou a hora de começar a montar meu acervo de obras musicais. Mas não sei de nenhuma coleção online ou alguma organização no Brasil que atenda à necessidade com obras digitais ou impressas.
Localizei na internet uma lista de organizações do mundo inteiro que transcrevem partituras. Passei por páginas japonesas, coreanas, alemãs e americanas. Cheguei a um site inglês, chamado Golden Chord, que vende partituras e aceita cartão de crédito.
Fechado o negócio, escrevi um email. O dono da companhia ficou preocupado, não sabia se o material chegaria até a minha casa. Decidimos que ele só mandaria uma parte para ver se a correspondência internacional teria sucesso. Esqueci o assunto por um tempo.
Outra ideia foi buscar um transcritor no Brasil. Por amigos em comum, conheci o Jonatham Franco Rocha, que acumulou anos de experiência com musicografia braille na Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, que chegou a construir um grande acervo.
Animado, pensei em tudo o que gostaria de estudar e fiz uma grande lista. Ao final, fui atrás de um orçamento para a impressão. Músicas em braille costumam ocupar mais espaço do que as feitas em tinta. No caso, seriam mais de 300 páginas, e o custo estimado me fez colocar o pé no freio.
Uma opção foi recorrer a uma linha braille. É um aparelho que lê informações de arquivos digitais e os transcreve em braille no corpo do próprio dispositivo, que tem pontinhos em relevo que se levantam e se abaixam rapidamente para formar as letras e sinais musicais. Infelizmente o preço é equivalente à soma de alguns iPhones de última geração. Pensei por alguns meses e concluí que, se fosse para me trazer a música de volta, o valor do equipamento seria maior do que qualquer coisa que um dia eu poderia comprar na vida.
Neste mês, tentei transferir para o aparelho as partituras feitas no Brasil. Por enquanto, não funcionou. Os sinais musicais apareciam todos embaralhados.
Buscando uma solução técnica, encontrei reportagem que falava sobre o pianista cego chinês Hu Haipeng. Ele possui um site com algumas músicas transcritas por ele para download gratuito. Testei a primeira, tive o mesmo problema das transcrições brasileiras. Enviei um email para o outro lado do mundo, sem acreditar que teria resposta. Em cinco minutos, recebo dele a orientação de uma configuração que precisaria alterar no computador para ler suas partituras. Funcionou. Comecei a estudar, na quarta-feira (27), a “Fantasia em Ré Menor”, de Mozart.
Dois dias depois, chega correspondência para mim. Deixei horas de lado, sem imaginar que fosse algo importante. Quando abri e percebi que havia braille ali, mal podia acreditar. Estavam embalados em uma manta protetora quatro livros encadernados vindos da Inglaterra —a encomenda que achávamos que se perderia no caminho.
Cada pequeno sucesso em uma busca tão improvável e que, por vezes, parece um sonho impossível é de encher o coração de esperança. Em poucos dias, deixei a escassez de material para trás e passei a ter até mais partituras do que tempo para estudá-las.