Folha de S.Paulo

Partitura em braille enche o coração de esperança

- Filipe Oliveira folha.com/hajavista

Quando um músico que enxerga decide tocar algo do repertório clássico, provavelme­nte ele leva menos de cinco minutos para encontrar a partitura que deseja na internet e estar com ela impressa nas mãos. Para quem usa partituras em braille, a história é bastante diferente.

Mesmo eu sabendo o básico sobre esse código de escrita, duvidava que seria possível encontrar material para estudo nesse formato. Resignado, quando entendi que a perda gradual de visão me impediria de seguir lendo partituras impressas em tinta, pendurei o diploma em música e fiquei por anos sem estudar piano.

Há seis meses, ouvi uma entrevista com a pianista e pesquisado­ra Fabiana Bonilha que me mostrou que eu estava errado. Ela, que é cega, contava sobre o repertório que construiu ao longo dos anos, sempre usando partituras em braille. Inspirado por seu depoimento, entrei em contato e, dias depois, ela se tornou minha professora.

Após muito estudo e já familiariz­ado com os principais sinais para indicar notas e suas durações, chegou a hora de começar a montar meu acervo de obras musicais. Mas não sei de nenhuma coleção online ou alguma organizaçã­o no Brasil que atenda à necessidad­e com obras digitais ou impressas.

Localizei na internet uma lista de organizaçõ­es do mundo inteiro que transcreve­m partituras. Passei por páginas japonesas, coreanas, alemãs e americanas. Cheguei a um site inglês, chamado Golden Chord, que vende partituras e aceita cartão de crédito.

Fechado o negócio, escrevi um email. O dono da companhia ficou preocupado, não sabia se o material chegaria até a minha casa. Decidimos que ele só mandaria uma parte para ver se a correspond­ência internacio­nal teria sucesso. Esqueci o assunto por um tempo.

Outra ideia foi buscar um transcrito­r no Brasil. Por amigos em comum, conheci o Jonatham Franco Rocha, que acumulou anos de experiênci­a com musicograf­ia braille na Fundação Dorina Nowill, em São Paulo, que chegou a construir um grande acervo.

Animado, pensei em tudo o que gostaria de estudar e fiz uma grande lista. Ao final, fui atrás de um orçamento para a impressão. Músicas em braille costumam ocupar mais espaço do que as feitas em tinta. No caso, seriam mais de 300 páginas, e o custo estimado me fez colocar o pé no freio.

Uma opção foi recorrer a uma linha braille. É um aparelho que lê informaçõe­s de arquivos digitais e os transcreve em braille no corpo do próprio dispositiv­o, que tem pontinhos em relevo que se levantam e se abaixam rapidament­e para formar as letras e sinais musicais. Infelizmen­te o preço é equivalent­e à soma de alguns iPhones de última geração. Pensei por alguns meses e concluí que, se fosse para me trazer a música de volta, o valor do equipament­o seria maior do que qualquer coisa que um dia eu poderia comprar na vida.

Neste mês, tentei transferir para o aparelho as partituras feitas no Brasil. Por enquanto, não funcionou. Os sinais musicais apareciam todos embaralhad­os.

Buscando uma solução técnica, encontrei reportagem que falava sobre o pianista cego chinês Hu Haipeng. Ele possui um site com algumas músicas transcrita­s por ele para download gratuito. Testei a primeira, tive o mesmo problema das transcriçõ­es brasileira­s. Enviei um email para o outro lado do mundo, sem acreditar que teria resposta. Em cinco minutos, recebo dele a orientação de uma configuraç­ão que precisaria alterar no computador para ler suas partituras. Funcionou. Comecei a estudar, na quarta-feira (27), a “Fantasia em Ré Menor”, de Mozart.

Dois dias depois, chega correspond­ência para mim. Deixei horas de lado, sem imaginar que fosse algo importante. Quando abri e percebi que havia braille ali, mal podia acreditar. Estavam embalados em uma manta protetora quatro livros encadernad­os vindos da Inglaterra —a encomenda que achávamos que se perderia no caminho.

Cada pequeno sucesso em uma busca tão improvável e que, por vezes, parece um sonho impossível é de encher o coração de esperança. Em poucos dias, deixei a escassez de material para trás e passei a ter até mais partituras do que tempo para estudá-las.

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Carolina Daffara

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