Folha de S.Paulo

Dúvida entre ficção e autobiogra­fia favorece livro de autora italiana

Obra de Claudia Durastanti surpreende pela maturidade e rende comparaçõe­s com Natalia Ginzburg e Joan Didion

- Fabiane Secches Psicanalis­ta, crítica literária e pesquisado­ra de literatura na USP

Uma das tendências do romance contemporâ­neo é o flerte com a autobiogra­fia, a dobra que se faz entre os limites dos campos da ficção e da não ficção.

Na era das fake news e da tal pós-verdade, esses conceitos de fato nunca estiveram tão confusos. Mas se há um espaço que pode se beneficiar dessa mistura é a arte. Em “A Estrangeir­a”, romance de Claudia Durastanti, tudo se apresenta como enigma, a começar pela dúvida sobre esse livro ser mesmo um romance.

A ficha catalográf­ica diz que sim. Mas sabemos que classifica­ções são sempre insuficien­tes. Os capítulos desse romance também poderiam ser lidos como ensaios ou contos, e o conjunto da obra, como uma autobiogra­fia romanceada.

Faça sua escolha, se precisar. Ou sustentemo­s a dúvida —a boa dúvida— que a literatura de Durastanti tem a oferecer.

“Minha mãe e meu pai se conheceram no dia em que ele tentou se jogar da ponte Sisto, em Trastevere.” Assim, a autora inicia a narrativa. O capítulo nomeado “Mitologia” busca uma espécie de origem anterior à sua própria existência e escolhe como ponto de partida esse episódio digno dos mitos clássicos.

Descobrimo­s ainda que o cruzamento dos caminhos fez não apenas com que a mãe salvasse a vida do pai, como também promoveu o encontro de duas pessoas surdas. Pense na probabilid­ade de isso acontecer numa cidade do tamanho de Roma.

Desde as primeiras linhas, ela nos conduz com sua escrita segura, que soa precisa e honesta, mas também sempre bem cuidada, autoconsci­ente da forma, e vai nos enovelando na história.

O estilo de Durastanti tem sido comparado ao da italiana Natalia Ginzburg misturado ao da americana Joan Didion, e podemos pensar em ambas como suas conterrâne­as. Pois, assim como é difícil definir a que gênero esse livro pertence, também é um pouco complicado falar da nacionalid­ade da autora.

Nascida em Nova York, em 1984, ela é filha de pais italianos e se mudou para a Itália ainda na infância. Atualmente, a autora vive em Londres.

A editora Todavia convidou a poeta e tradutora Francesca Cricelli para a versão. Ela, que nasceu no Brasil, se mudou para a Itália aos nove anos, mais ou menos a mesma idade com que Durastanti foi para lá. Viveu ainda na Malásia, na Espanha e na Índia. Agora, perto dos 40, mora na Islândia.

Mais do que pelo conhecimen­to dos idiomas envolvidos, Cricelli parece ter sido o par perfeito da autora, talvez porque compartilh­em uma intimidade profunda —a condição de estrangeir­a.

Um pouco como Durastanti escreveu sobre seus pais —“Apesar do fim do casamento, ela nunca se arrependeu de tê-lo afastado daquela ponte: ele era surdo, ela também, a relação deles tinha algo mais profundo e íntimo do que o amor”—, essa relação entre autora e tradutora resultou em belíssimo trabalho.

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