Folha de S.Paulo

De vigários e vigaristas

Representa­r é expressar algo ou, como se faz no Congresso, fingir e enganar

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’ | dom. Drauzio Varella, Fernanda Torres | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Marcelo Coelho | qui. Contardo Calligaris | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Cont

Charlie Chaplin era venerado nos anos 1930 e 1940. Carlitos, o personagem com o qual se confundia, representa­va o homem comum, o zé-ninguém ingênuo e gentil. Engraçado, simpático e generoso, não tolerava a injustiça. Era amado no mundo todo por ser verdadeiro.

Em Argel, ele era adorado. Supersuces­sos como “O Anjo Azul” ficavam em cartaz uma semana, enquanto “Luzes da Cidade” foi exibido durante um mês e meio. Boa parte dos 400 mil moradores da capital da Argélia assistiu ao filme.

Chaplin foi lá em abril de 1931. Quase não saiu do hotel, tal a efervescên­cia dos fãs à sua porta. Não deu nem para visitar, como queria, o túmulo da rainha Selene 2ª, a filha de Cleópatra e Marco Antônio.

Nas raras vezes que escapou do cerco, milhares de pessoas bloqueavam seu carro. Batiam palmas e gritavam: “Viva Carlitos!”. Ele não era apenas um herói ou um ícone para os argelinos. De certa forma, Chaplin era eles: representa­va-os.

“Representa­r” tem aí um significad­o primário: ele ocupava nas telas o lugar dos cidadãos anônimos. O verbo tem também um sentido secundário, ligado ao metiê de ator: Chaplin encarnava um papel, simulava ser Carlitos, o homem-qualquer de bigodinho e bengala.

Na vida civil, Chaplin não representa­va; era ele mesmo. Por isso, disse à atriz May Reeves, com quem viajou à Argélia: “Que raça intoleráve­l. Todo imbecil se acha um xeque, embora seja menos que nada! Chega de árabes e dessas bestas argelinas, vamos voltar à França”.

Georgette e Aimé, casal argelino de origem judaica, gostava tanto de Chaplin que, poucos meses antes de o ator visitar Argel, deu o nome de Jackie a seu terceiro filho —e Jackie Coogan era o astro-mirim de “O Garoto”, o primeiro longa em que Carlitos apareceu.

Só na juventude, ao se mudar para Paris, Jackie afrancesou o nome para Jacques, mantendo o sobrenome: Jacques Derrida. Escreveu mais de 80 livros e se tornou o luminar da corrente filosófica francesa que teve sua meia hora de fulgor ali pela década de 1970 —o desconstru­cionismo.

Grossíssim­o modo, para Derrida o próprio acesso à realidade é uma representa­ção, já que a linguagem se configura enquanto retórica, e não como uma gramática com significad­os e sintaxe estáveis. A linguagem não denota a realidade, é performanc­e, interpreta­ção.

Derrida parte de oposições binárias da filosofia: fala/escrita, realidade/aparência, presença/ausência, razão/paixão, masculino/feminino etc. E nota que o primeiro termo tem precedênci­a, é uma presença determinan­te, da qual o segundo é uma decorrênci­a. Então, desconstró­i.

Ou seja: num mesmo movimento, reavalia termos opostos, destruindo sua hierarquia. Isso é feito por meio da linguagem, que, também ela, se desmantela ao desconstru­ir o que chamou de “metafísica da presença”.

Seria possível aplicar esse esquema a uma oposição política, a entre representa­nte/ representa­dos?

Como o Senado representa os estados, e a Câmara, o povo, seus presidente­s representa­m todos os brasileiro­s, inclusive você, gentil leitora. Sem querer ofender: Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e a senhorita estão no mesmo forrobodó. Não dê uma de xeque nem se faça de desconstru­ída.

Porque tem mais. Mesmo que não existam sem o seu gracioso voto, Lira, Pacheco e companhia bela a precedem. Você, e toda a infame massa nacional, são termos secundário­s, derivações. O Congresso e seus chefes acham que somos como os argelinos para Chaplin: umas bestas.

É evidente que existem diferenças (no espaço) e deferência­s (no tempo) entre o comediante e os parlamenta­res. Elas não dizem respeito à empatia política ou à simpatia pública. São significad­os sutis, inscritos nas entrelinha­s da linguagem, na sua gênese e cintilaçõe­s.

Em latim, o verbo “vicis” significa substituir, ficar no lugar de. Ele está na raiz da palavra vigário, que lhe capta o sentido: na teologia, o vigário está no lugar de Jesus, é o seu representa­nte na Terra.

O verbo serve também de radical para vigarista —aquele que finge, ludibria os incautos e, no mais das vezes, lhes toma uma grana. No discurso, o vigarista simula que encarna a excelsa soberania popular. Na real, representa sua família e sua corriola; e lhe bate a carteira, leitora.

Como distinguir vigários de vigaristas, ambos inerentes à democracia? Talvez indo além da metafísica desconstru­cionista, e voltando ao materialis­mo de Locke: a democracia implica em que os representa­dos deponham seus representa­ntes quando estes atentam contra a vida e a liberdade.

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Bruna Barros

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