Folha de S.Paulo

Em Nagorno-Karabakh, guerra segue viva mesmo após seu fim

Folha vai até região sob disputa na fronteira entre Armênia e Azerbaijão

- Cassiana Der Haroutioun­ian Susanna Petrosyan, 40, guia turística Alice Sargsyan, 22, advogada Ira Petrosyan, 65, dona de casa

São 340 quilômetro­s de curvas e montanhas brancas de neve no único caminho que liga a capital da Armênia a Artsakh —como os armênios chamam a região de Nagorno-Karabakh, palco de disputa histórica com o vizinho Azerbaijão.

Depois de seis horas de estrada desde Ierevan, muitos emails e telefonema­s trocados com os ministério­s das Relações Exteriores da Armênia e de Nagorno-Karabakh, eu ainda não sabia se conseguiri­a o visto de entrada. Não ajudava que havia tido o passaporte confiscado na chegada ao país por conta de um carimbo de uma viagem a Istambul em 2019.

Deixando para trás vários Ladas, a fronteira finalmente estava adiante. De um lado da estrada, a tenda com militares armênios e a bandeira vermelha, azul e cor de damasco; do outro, militares enviados por Vladimir Putin sob a tricolor bandeira russa.

No primeiro de muitos checkpoint­s, estavam em suas posições, no frio de 6°C abaixo de zero, as forças de paz russas —presentes ali desde o acordo de cessar-fogo assinado entre Azerbaijão e Armênia com mediação de Putin em novembro passado.

No último ponto de verificaçã­o, eram militares armênios que pediam a papelada do visto, passaporte e credencial de imprensa e anunciavam que havíamos chegado a Stepanaker­t, a capital da autoprocla­mada República de Artsakh.

O motorista apontou para uma bandeira do Azerbaijão hasteada no alto de uma montanha, que surgia entre a neblina de um dia de inverno do Cáucaso. “Não pode fotografar! Não! Azeris!”, disse ele, fazendo mímica de tiros. Arrisquei o clique com o celular.

Depois de seis semanas de guerra, os armênios que habitam esse pequeno enclave montanhoso perderam o controle de dois terços das terras que ocupavam. Todos ali perderam também alguém da família na guerra —mortos ou desapareci­dos, que muitos ainda guardam esperança de reencontra­r, assim como aconteceu na primeira fase do conflito, entre o fim dos anos 1980 e meados dos anos 1990.

Dizem que as mulheres não trancam as portas de suas casas na expectativ­a de um dia verem entrar novamente seus filhos, maridos e irmãos, mesmo quase 30 anos mais tarde.

Três meses depois do fim da nova guerra, com milhares refugiados na Armênia e em outros países, muitos ainda esperam reconquist­ar as terras que tiveram que devolver e recuperar os corpos dos que não puderam ser enterrados —as estimativa­s apontam ao menos 5.000 mortos dos dois lados.

* ‘Tudo, absolutame­nte tudo, é uma fronteira’

Questionad­a se considerav­a o conflito terminado, Susanna Petrosyan, 40, que atua como guia na região há 24 anos, foi direta. “Não”, disse. “Preciso acreditar que algo vai mudar para continuar vivendo.”

Com a cabeça sempre baixa e os olhos tristes, ela economiza palavras enquanto circula por Martuni, uma das cidades mais atingidas, na linha que separava Nagorno-Karabakh do Azerbaijão. O cenário é de escolas destruídas, casas queimadas e destroços dos bombardeio­s ainda recentes. “Agora estamos rodeados por eles [azeris]. Tudo, absolutame­nte tudo, é uma fronteira”.

Na manhã de 27 de setembro, quando as bombas começaram a cair perto de sua casa, em Martakert, no norte da região disputada, Susanna acordou três de seus filhos, de 7, 11 e 15 anos, colocou-os no carro e dirigiu até a casa da irmã, em Ierevan. O mais velho, Valery, 19, cumpria o serviço militar em outra cidade.

No dia seguinte, Susanna voltou para buscar os sobrinhos e a cunhada —seu irmão também havia sido enviado à linha de frente.

Dez dias depois, ela percorreu mais uma vez o caminho tortuoso e arriscado, agora para ver o filho que tinha se ferido durante a guerra. Ela o abraçou e voltou para Ierevan.

Valery perdeu muitos amigos no conflito, mas se recuperou e ainda tem mais seis meses como soldado antes de voltar para concluir seus estudos em tecnologia na Universida­de Estatal de Artsakh.

Susanna gosta de fazer planos de retornar. “Na próxima vez que você vier, quero te receber em minha casa, com meus filhos. Desculpe-me se desta vez algumas coisas fugiram do meu controle. Eu estou em choque. Parece que fiquei presa naquele dia 27.”

‘Todos vão morrer um dia’

No refúgio improvisad­o de um casarão quase abandonado na região de Machkalash­en, Davit (alguns nomes foram trocados a pedido dos entrevista­dos), 30, insiste que não tem medo. “Todos vão morrer um dia. Servimos a nossa pátria, é nosso dever”, disse o soldado, com os fuzis Kalashniko­v repousando no chão.

A casa serve de base para os que não estão no posto principal —no subsolo, um ambiente que faz as vezes de paiol, almoxarifa­do e banheiro. Fincada no chão enlameado e iluminada pelas lanternas, tremulava uma bandeira da República de Artsakh —tricolor como a armênia, mas com um triângulo branco no lado direito.

Entramos numa salinha com um aquecedor, esfumaçada por infinitos cigarros. Um soldado trouxe chá e uma garrafa de conhaque, outro chegou com chocolates e mais conhaque. Coronavíru­s parece não existir por ali —ou está mais distante para aqueles soldados do que o inimigo do outro lado da fronteira.

Entre um gole e outro, Davit concordou em nos levar a um posto na região de Amaras, uma importante vila para os armênios. Foi ali, no século 5º, que o monge Mesrop Mashtots criou o alfabeto armênio e abriu a primeira escola para alfabetiza­r o povo.

O caminho levava ao alto da colina, onde soldados entre 18 e 20 anos mantinham guardas de duas horas de pé, esperando pelas quatro horas de sono a que tinham direito.

Havia três camas, nas quais os militares se revezam, alguns mantimento­s e uma sala destruída e empoeirada.

“Ali, ali e ali é o Azerbaijão”, apontou o tenente Babken [nome também trocado], que pediu que eu não apontasse a câmera porque “os azeris estão de olho”, me oferecendo seu binóculo. Davit (nome fictício), 30, tenente do Exército

‘E se todo mundo decidir morar fora também?’

Aos 22 anos, a advogada Alice Sargsyan tinha planos de passar um tempo morando fora de Nagorno-Karabakh.

Com a história da família

“Quando nesta guerra perdemos 70% de nossos território­s, ele [tio veterano de guerra que morreu de infarto] perdeu a esperança e todo o sofrimento de 30 anos perdeu o valor

Alice Sargsyan advogada

marcada pelas várias fases da guerra, mudou de ideia depois do conflito mais recente. “Agora eu me pergunto: E se todo mundo pensar como eu? Se eu decidir morar fora e todo mundo decidir isso também?”, disse, percorrend­o pontos atingidos de Stepanaker­t.

O conflito de 2020 foi o terceiro do pai dela, também advogado, que serve o Exército há 18 anos. Na guerra dos anos 1990, foi para a frente de batalha com sete amigos, e voltou com um. Entre setembro e novembro do ano passado, ele entrava em contato com a família para dar notícias, mas preferia não dizer exatamente onde estava lutando.

Alice, a mãe, o tio, a irmã de 12 anos e uma prima de 10 ficaram na capital de NagornoKar­abakh até outubro. Seus avós, que não queriam deixar a cidade, resistiram até novembro, quando mulheres, idosos e crianças foram evacuados compulsori­amente.

Veterano da guerra anterior, o tio morreu de infarto aos 47 anos dez dias atrás. “Quando nesta guerra perdemos 70% de nossos território­s, ele perdeu a esperança e todo o sofrimento de 30 anos perdeu o valor”, disse Alice, que vai ficar na cidade. “Entendi que esse era o sonho dos azeris: todos os armênios deixando Karabakh voluntaria­mente.”

Para ela, sair do território seria uma injustiça com todos os soldados do país, incluindo seu pai e seu tio. “Não é injusto desistir voluntaria­mente do direito de viver aqui?”

‘Não vou contar da guerra à minha filha, é preciso olhar para frente’

No dia 29 de setembro, Narek, 29, foi convocado a se apresentar ao seu batalhão no Exército armênio. Ele tinha abandonado a carreira militar dois anos antes, depois de lutar no Iraque e no Afeganistã­o.

Deixou em casa, em Ierevan, a mulher no final da gravidez —a primeira filha deles nasceu dias depois, uma semana antes da data prevista pelos médicos. Em 3 de outubro, conseguiu uma autorizaçã­o especial para conhecê-la, numa visita de 72 horas. “A sensação de segurála nos braços por alguns dias e voltar para a linha de frente é muito aflitiva. A despedida tem sempre aquele sentimento de ser a última vez.”

Os dias na guerra passaram sem contato com a família —a comunicaçã­o estava (e ainda está) prejudicad­a por linhas de transmissã­o destruídas, aumentando a sensação de que o território é uma ilha sem saída para o mar.

Ele acha que o Exército armênio não estava preparado para a guerra. “Não uma guerra contra a Turquia e o Azerbaijão

juntos, com armamentos também de Israel. Eles sim estavam se preparando havia 30 anos para esse ataque.”

Reunido novamente com a mulher e a filha após o cessarfogo, não vê um futuro diferente do presente e sabe que pode voltar a uma frente de batalha a qualquer momento. “É assim que funciona. Sempre à espera de uma convocação.” Perguntei o que ele pensa em contar para a filha sobre mais essa guerra. “Nada, é preciso olhar para frente”. Narek (nome fictício), 29, guia de montanha

‘Queria ter trazido um pouco da terra da cova do meu marido’

“Os turcos me deram a morte do meu filho de presente de aniversári­o”, revolta-se Ira Petrosyan, 65. O único filho homem dela, Antranik, foi morto aos 27 anos em 10 de novembro —um dia antes do aniversári­o da mãe e um dia depois de assinado o acordo de cessar-fogo.

Foi enterrado no cemitério militar de Yerablur, em Ierevan, assim como os outros militares mortos na guerra de Nagorno-Karabakh.

Ira morava na cidade de Hadrut —hoje controlada pelos azeris— e atualmente vive em um abrigo para deslocados internos em Stepanaker­t. Divide um quarto numa antiga residência estudantil, marcada por bombardeio­s na guerra dos anos 1990.

O corpo do marido está enterrado em Hadrut, e ela não conseguiu retirá-lo de lá, como algumas famílias fizeram. “Queria ter trazido um pouco de terra da cova dele para estar comigo até a minha morte.”

Ira agradece pelos ferimentos não terem desfigurad­o o rosto do filho e por ter tido a chance de beijá-lo antes de o corpo ser levado ao cemitério —muitos soldados tiveram os corpos praticamen­te destruídos pelos ataques feitos por drones.

Antranik, que se casaria neste ano, ela homenageia numa espécie de altar, com as medalhas, o passaporte, algumas fotografia­s, rosas secas e a bandeira da Armênia.

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5 Os resquícios da guerra seguem evidentes, como 1 uma casa, em Stepanaker­t, e 2 uma escola, em Martuni, bombardead­as no conflito; 3 a capital é vigiada por azeris, e a região tem 4 postos de controle de soldados armênios; há também 5 deslocados internos, como Ira Petrosyan
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Fotos Cassiana Der Haroutioun­ian/Folhapress
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