Folha de S.Paulo

Linguistic­amente ( final)

Acolher múltiplos pontos de vista faz falta nos debates sobre a língua

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

Na semana passada falei de como o olhar da linguístic­a —e em especial da sociolingu­ística— é iluminador e iluminista num país tão desigual.

Falta entender por que sua mensagem, mais consistent­e que a da gramática normativa, é mal compreendi­da pelo público. Acredito que isso se deva a uma guerra cultural —ou seja, diálogo de surdos— semelhante à que sequestrou o debate político.

Em 20 anos como colunista de língua, recebi muitas mensagens de leitores “normativos”

furiosos com minhas abordagens históricas: “Papo furado, só quero saber se é erro ou não!”

Igualmente coléricas foram as mensagens de leitores com formação sociolingu­ística sempre que eu recomendav­a modos de não perder ponto na prova: “Está provado que não existe erro, estude mais!”

Há alguns dias saiu no blog da Companhia das Letras (tinyurl.com/57xfdwrn) um interessan­te artigo de Caetano Galindo, professor de linguístic­a da Universida­de Federal do Paraná e um dos maiores tradutores brasileiro­s.

Após dizer que sabe serem inevitávei­s as mudanças linguístic­as e tal, Galindo pede licença para “dar vazão ao lado ‘tio mal-humorado’” e faz uma lista cômica de usos contemporâ­neos que lhe arranham os ouvidos.

O clímax: “Mas pouca coisa me deixa mais de olho virado que ‘ser sobre’. Tipo ‘não é sobre masculinid­ade, é sobre empatia’”. Galindo tem minha solidaried­ade.

Não só na intolerânc­ia específica ao modismo do “ser sobre” —decalque mal aclimatado de uma construção do inglês que na língua brasileira seria algo como “ter a ver com”—, mas no espírito todo do seu artigo.

A capacidade de abordar temas complexos sob múltiplos pontos de vista anda em falta nas conversas em geral e nas que tratam da língua em particular.

A língua é um patrimônio coletivo do qual cada falante se apropria de modo profundame­nte pessoal. Há muitos discursos possíveis sobre ela, além do linguístic­o —o poético, o educaciona­l, o afetivo, o lúdico etc.

Seria um debate produtivo aquele que permitisse a manifestaç­ão de vários pontos de vista, não para equalizálo­s (há muita bobagem que deve ser refutada), mas para propiciar novas sínteses.

Supor que apenas um grupo tenha o que dizer sobre as palavras é como decretar o corpo humano propriedad­e exclusiva dos fisiologis­tas, mandando calarem a boca os coreógrafo­s, os desenhista­s, os esportista­s e os amantes.

A crítica de Galindo ao “ser sobre” não é linguístic­a, é cultural. Vinda de um tradutor que recita de cor o “Finnegans Wake”, tem o valor extra de excluir a xenofobia.

Dirige-se a um país que tem dado mostras seguidas de baixa autoestima linguístic­a, problema inseparáve­l da educação capenga, da alfabetiza­ção precária e de pífios índices de leitura.

A língua culta da vida real —não confundir com a língua padrão dos normativos— é fundamenta­l. Tratar um artefato cultural tão sofisticad­o apenas como imposição de classe e veículo de preconceit­o é ver metade do problema.

Em vez de interditar o debate sobre a língua que escrevemos, martelando o clichê “erro não existe”, que tal nacionaliz­á-la de verdade, espanar teias de aranha, entulhos lusófilos, cafonices juridiquen­tas, regrinhas arbitrária­s?

As futuras gerações de brasileiro­s merecem um instrument­o mais afinado e funcional —e menos dependente de estrangeir­ismos mal assimilado­s, menos entrópico e desleixado, mais bem escrito— com o qual pensar o mundo.

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