Folha de S.Paulo

Veja só que bom que era, Aurora

Aurora abre os olhos, e a realidade é ainda mais esquisita do que o sonho

- Manuela Cantuária Roteirista e escritora, faz parte da equipe do canal Porta dos Fundos

Aurora se aproxima dos músicos. É quando leva as mãos ao rosto e percebe que se esqueceu de botar sua máscara de proteção. Abre os olhos. A realidade é ainda mais esquisita do que o sonho. O Carnaval foi cancelado.

Aurora vaga de pijamas, sob o sol acachapant­e de 11h45 no centro. Não se vê vivalma nas ruas e avenidas. Ela persegue o som abafado de uma marchinha, que toca em algum lugar por ali. O pé embola na serpentina, está chegando perto.

Em um cruzamento na Rio Branco, uma pequena banda besuntada em purpurina parece aguardá-la. Aurora se aproxima dos músicos. É quando leva as mãos ao rosto e percebe que se esqueceu de botar sua máscara de proteção.

Aurora abre os olhos. A realidade é ainda mais esquisita do que o sonho.

O Carnaval foi cancelado. E ela divide sua cama com aqueles quatro músicos fantasiado­s, sem fazer a mais vaga ideia de como foram parar ali.

É hora de acordar, é terçafeira de Carnaval, é o fim da aventura humana na Terra. Eles tocam, batucam e dançam sobre o colchão. Aurora teme por seu lençol de 300 fios e por sua saúde mental.

Tenta expulsá-los do apartament­o, mas a banda só se comunica em “folião language”. Aos roucos berros, indagam onde está o Boi Tolo, daqui para onde, essa água é água mesmo ou...? Aurora pensa em ligar para a polícia, mas percebe que seu celular desaparece­u.

Ela não consegue impedi-los de invadir o quarto de sua tiaavó, no fim do corredor. Lá dentro, a banda encontra somente uma cama hospitalar vazia.

Aurora enfia a cara em uma máscara e foge do apartament­o. Os músicos seguem atrás dela. Penduram-se nas barras do metrô feito crianças no trepa-trepa, mas só Aurora parece se importar com a presença deles e vice-versa.

Aperta o passo, abrindo alas no Cemitério São João Batista. Abraçada a um punhado de flores que vão se esbagaçand­o pelo caminho. Os foliões saltitam entre pétalas e lápides.

“E os meus olhos ficam sorrindo, e pelas ruas, vão te seguindo, mas mesmo assim, foges de mim...”

A banda toca “Carinhoso” diante do túmulo de dona Camélia. Aurora enfim consegue se despedir de sua tia-avó. Daqui para onde, insistem os músicos. Eu não sei, lamenta.

Um deles assopra uma mão cheia de purpurina nos olhos de Aurora. Ela não consegue enxergar nada. Alguém a chama pelo nome. Aurora. Um ponto de luz se arreganha no breu. Aurora, você tá bem?

Aurora abre os olhos. O rosto coberto de purpurina. Está no epicentro de um bloco de Carnaval, ombro a ombro com uma imensa multidão. Sua amiga preocupada, Aurora quase perdeu os sentidos. Aurora respira fundo. Foi uma bad trip, mas já passou.

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Silvis

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