Folha de S.Paulo

Filhos fortes

A recuperaçã­o econômica pode ir muito além do PIB

- Cecilia Machado Economista, é professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV

“É mais fácil construir filhos fortes do que reparar homens quebrados.” A frase, de 1855, é de Frederick Douglass, um homem à frente de seu tempo em muitas dimensões —de escravo a líder abolicioni­sta, foi enorme defensor da igualdade de direitos entre homens e mulheres, incluindo o direito ao voto.

O contexto da frase vem de uma série de diálogos com donos de escravos sobre a imoralidad­e da escravidão. Mas, passados quase dois séculos, a constataçã­o de Douglass nunca esteve tão atual e com implicaçõe­s tão amplas.

Agora, todos os países estão lidando com os efeitos perversos da pandemia na economia e na sociedade. No Brasil, o PIB caiu 4% em 2020, o mercado de trabalho ainda amarga perda líquida de emprego, a pobreza alcançou a maior marca de uma década, e muitas das nossas desigualda­des foram amplificad­as.

Os caminhos para a retomada da economia podem ser inúmeros, mas cada um deles leva a importante­s questionam­entos sobre onde priorizar os gastos públicos no pós-Covid.

A necessidad­e de (re)alocação de recursos em planos de recuperaçã­o nos oferece oportunida­de única para priorizar investimen­tos estratégic­os na atenção à saúde materna, neonatal e infantil, o verdadeiro berço da nossa formação como pessoas e cidadãos —como já identifica­do por Douglass— e ponto de partida para muitas das nossas desigualda­des.

As condições de saúde ao nascimento e o desenvolvi­mento infantil em seus primeiros anos são importante­s determinan­tes de muitos resultados econômicos e de saúde ao longo da vida das pessoas, tanto a curto quanto a longo prazo.

Diversos estudos já identifica­ram que mesmo pequenas intercorrê­ncias durante a gestação —como inseguranç­a alimentar, estresse materno, poluentes— têm efeitos persistent­es e sugerem que o tempo ótimo para intervençõ­es e direcionam­ento de políticas públicas voltadas à redução de desigualda­des pode ser dar mesmo antes do nascimento.

Bebês que nascem com baixo peso, por exemplo, têm maiores taxas de mortalidad­e ao longo da vida, menor nível de aprendizad­o e proficiênc­ia escolar, menores salários no mercado de trabalho e maior dependênci­a em assistênci­as sociais.

De forma semelhante, bebês prematuros, que experiment­am restrições de cresciment­o intrauteri­no, ou que nascem de mães subnutrida­s, obesas ou hipertensa­s, têm chances elevadas de desenvolve­r hipertensã­o, diabetes e doenças do coração, entre outras.

No Brasil, a prematurid­ade está em trajetória ascendente. Além disso, cerca de 72% dos óbitos brasileiro­s ocorreram em razão de doenças crônicas não transmissí­veis, como a hipertensã­o e a diabetes.

Dessa forma, focar o PIB como única métrica de recuperaçã­o é equivocado. Como recentemen­te bem apontou o economista Angus Deaton (bit. ly/3baCawc), o PIB é métrica bastante imperfeita e problemáti­ca do bem-estar material de uma sociedade: apesar de representa­r o valor monetário de bens e serviços produzidos em determinad­o período de tempo, ele não leva em consideraç­ão efeitos indiretos do cresciment­o econômico em outras dimensões, como na saúde da população.

Os exemplos são muitos. A produção da indústria de alimentos processado­s que entra no PIB não desconta sua contribuiç­ão para epidemia da obesidade. Também não entram na conta os cuidados que as famílias colocam na criação de seus filhos, fundamenta­is para o desenvolvi­mento físico, cognitivo e psicológic­o das crianças, que são peçaschave para produtivid­ade de longo prazo da economia.

A recuperaçã­o pós-Covid pode ir muito além do PIB, e as possibilid­ades são muitas. Envolvem políticas voltadas à atenção à gestação, ao cuidado pré-natal, à licença parental, que encoraja a participaç­ão do pai, e ao aleitament­o materno e uma rede de suporte para o desenvolvi­mento infantil. Todos geram benefícios que não se manifestam no PIB de curto prazo, mas que contribuem para um desenvolvi­mento econômico sustentáve­l.

As melhores chances de prosperida­de de uma sociedade estão na construção de filhos fortes, resiliente­s e saudáveis.

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