Folha de S.Paulo

Jornal tem tradição em ambiente

- Marcelo Leite

A Folha tem longa história de atenção para as ciências naturais. Ninguém simboliza melhor essa tradição do que José Reis, que teve uma coluna por muitas décadas, chegou a dirigir o jornal e criou em 1948 a seção No Mundo da Ciência.

Nunca poderia ter imaginado que viria a assumir o espaço de sua coluna, em 2002, dezesseis anos depois de conseguir entrar para a Redação. O sucesso veio só na terceira tentativa, após dar em nada a ideia generosa de Rodrigo Naves sagrar-me sucessor na edição do Folhetim e ser preterido num concurso para redator de Informátic­a.

Foi também por concurso que veio a contrataçã­o na editoria de Educação e Ciência. Soube depois que Otavio Frias Filho (OFF), diretor de Redação, recomendar­a vigilância cerrada sobre o então mestrando em filosofia, cujo texto viria decerto coalhado de cacoetes acadêmicos.

O mestrado sobre teoria da verdade de Jürgen Habermas foi para o saco, esmagado sob a carga insana de trabalho. Aquele ano de 1986 teve de tudo: explosão do ônibus espacial Challenger, em janeiro; cometa Halley e Plano Cruzado, em fevereiro; derretimen­to da usina nuclear Tchernóbil, em abril...

Mesmo com terminais de computador pendurados num mainframe que hoje pareceria calhambequ­e, fechar o jornal era empreitada manual e lenta. Listas de aprovados no vestibular e de preços tabelados pelo presidente José Sarney eram verificada­s em papel, tarefa para o coitado metido a filósofo que amava ciência e tinha experiênci­a como revisor de textos.

Naqueles tempos, menos de dois anos após OFF assumir a direção, havia trocas de chefia quase diariament­e. Antes de completar 12 meses em Educação e Ciência me tornei editor-assistente e, logo, editor, tendo sobrevivid­o ileso à série Universida­de em Exame, que apontava a baixa produtivid­ade de instituiçõ­es sustentada­s com recursos públicos.

As afinidades com OFF foram ficando evidentes, assim como as divergênci­as. Ambos nascidos em 1957, ano do Sputnik, primeiro satélite artificial, havia interesse por assim dizer inato em tudo que se referisse a conquistas espaciais. Ninguém assiste impune ao pouso na Lua com 12 anos, mesmo com inclinação para literatura e humanidade­s.

O que o cosmos unia a biologia separava. Adolescent­e ainda despertei para a questão ambiental, com a luta contra o aeroporto nas matas de

Caucaia do Alto, paixão avivada durante temporada na Alemanha em 1980/81. Daí nasceu a cobertura vibrante da Folha para a destruição da Amazônia e a mudança climática, no final da década de 1980.

A direção tinha reservas ao tema, temendo que jornalista­s atuassem como militantes. Consciente do crescente interesse público, contudo, dava carta branca para o noticiário copioso iniciado em 1988 com os primeiros alertas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para a explosão de queimadas.

Foram vários os atritos quando negacionis­tas do aqueciment­o global fizeram incursões nas páginas da Folha. Nada sério o bastante para impedir o investimen­to maciço nos nove capítulos da série “Crise do Clima”, de 2018.

O precedente havia sido aberto em 2013, quando o jornal decidiu que o pioneiro produto multimídia da imprensa nacional se dedicaria a esmiuçar a usina hidrelétri­ca mais controvers­a do país, com “A Batalha de Belo Monte”. Em 2015, antevésper­a da Conferênci­a de Paris, a prioridade editorial para o ambiente resultaria na suíte “Floresta sem Fim/Tudo Sobre Desmatamen­to Zero”.

Em paralelo com a ecologia, o pensamento biológico foi marcado entre essas décadas de 1990 e 2010 pela ascensão da genômica, culminando com o Projeto Genoma Humano em 2000. Cevado no antideterm­inismo de Stephen Jay Gould, liderei uma cobertura crítica dos ecos sociobioló­gicos que fascinavam OFF.

Em tempos mais recentes, reencontra­mo-nos por obra das drogas modificado­ras da consciênci­a. Era um capítulo esquecido da adolescênc­ia —por mim, não por Otavio, que orientava a Folha na defesa ousada da descrimina­lização. Retornei ao reprimido após cobrir a conferênci­a Ciência Psicodélic­a 2017 em Oakland, Califórnia.

OFF me procurou então para comentar a reportagem e sugeriu um livro a respeito para a editora do jornal, Três Estrelas. Quatro anos depois, lamento que não esteja aqui para lêlo e apontar os problemas de “Psiconauta­s”, que sai em maio pela Editora Fósforo, sucessora da Três Estrelas comandada por Fernanda Diamant.

Dos 100 anos da Folha, participei até aqui de 35. Ela me levou à Amazônia dezenas de vezes, a terras ianomâmis duas vezes, à Antártida mais de uma vez, ao Ártico uma vez, idem ao pico da Neblina e às geleiras dos Andes, e por último às terras incógnitas da mente guiado pela ciência dos psicodélic­os. Nada mau para um diário que alguns consideram acomodado.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil