Folha de S.Paulo

Folha é minha cachaça, eu não largo

Passo os dias falando mal de cada detalhe

- Gregorio Duvivier É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos

Na Folha, sinto-me em casa. Literalmen­te. Passo os dias falando mal de cada detalhe. Uma casa, por definição, é aquilo que você passa o dia querendo mudar. Você não odeia cada detalhe de um bar ou de um museu. Só se perde tempo odiando uma porta que não fecha direito na sua própria casa. Nenhuma janela emperrada te irrita tanto quanto a sua própria.

Na Folha, sinto-me em família. Literalmen­te. No sentido de que não concordo com a opinião política da maioria das pessoas. Preferia fingir que não existem, mas aqui não consigo esquecer.

Na Folha sinto-me naqueles botequins com caça-níqueis. Sei que o que dá dinheiro ali é a maquininha. Mas ainda assim fico pela companhia dos bebuns.

Na Folha, sinto-me um pinto no lixo. Completame­nte perdido, me pergunto como é que um filhote de galináceo veio parar em meio a um amontoado de papel higiênico sujo e lixo hospitalar. E o mais importante: por que é que os seres humanos imaginam que estou feliz aqui a ponto de inventar a expressão pinto no lixo? Só porque estou revirando bosta? Não percebem que é desespero?

Na Folha, sou tratado como um rei. Mais precisamen­te Luis 16. A verdade é que a Folha foi uma espécie de pai pra mim. Mais precisamen­te o Fábio Júnior. Mora em outra cidade, às vezes troca meu nome, mas faz aquele Pix uma vez por mês. A Redação da Folha é uma espécie de paraíso. Cada vez mais vazio. As pessoas que lá estão não parecem vivas. Mas vão ficando por lá. Até porque a concorrênc­ia é um inferno.

Na Folha, me sinto a última bolacha do pacote. Amassada, estraçalha­da, esquecida. A verdade é que minha história aqui tem sido um conto de fadas. Precisamen­te dos irmãos Grimm, cheia de abandono e experiênci­as de quase-morte.

A Folha é a minha cachaça. Desce difícil, dá dor de cabeça. Mas não consigo largar porque me aproximou de muita gente legal.

A Folha pra mim foi uma faculdade. Quase não compareci. Mandei quando pude, o que pude. Tranquei quando não pude. E ainda assim não fui jubilado.

A Folha é uma espécie de Olimpo do jornalismo —cheia de traições, vinganças e orgulho desmedido. Mentira: aqui estamos todos no mesmo barco. Mais precisamen­te no Titanic. Caro, cheio de fascistas, fadado ao naufrágio —mas tem umas festas boas na terceira classe, e a gente esquece que vai bater.

Cem anos de Folha. Ou 700— porque são anos de cachorro. Parabéns a todos os envolvidos. Incluindo você, amigo leitor. Obrigado pela companhia.

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Catarina Bessell

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