Onda do streaming que mudou música e vídeo ainda não pegou nos games
Na era do lazer sob demanda, serviços de streaming de games ainda lutam por seu espaço, e terreno pode ser fértil no Brasil
belo horizonte Tem gente que diz que a era de Aquário ainda não começou. Mas a era do streaming, essa sim, está aí e isso é fato incontestável.
O Spotify terminou o ano passado com cera de 345 milhões de usuários ativos ao redor do mundo. A Netflix já ultrapassou a marca de 200 milhões de assinantes.
Só que, se esse modo de consumo está consolidado na música e no audiovisual, ele ainda dá os primeiros passos na indústria dos games —e tem encontrado pedras no caminho.
Vale lembrar que o cloud gaming —como são conhecidos os serviços de streaming de jogos— não é sinônimo de transmitir um vídeo de game na Twitch. Ele consiste em jogar diretamente na nuvem, sem precisar de console ou outro hardware.
Ou seja, o jogador não precisaria de máquinas de última geração ou de consoles de R$ 5.000 para jogar os títulos mais recentes. Daria para jogar num computador capenga ou até mesmo num celular.
Por isso, o Steam não pode ser considerado uma plataforma de cloud gaming, já que nele os jogos são baixados e ocupam espaço no computador.
Mas se o streaming praticamente acabou com os CDs, aparelhos de DVD e com locadoras, os consoles ainda devem fazer parte da vida dos gamers por um bom tempo.
E, nessa área, foi o streaming que sofreu uma baixa recentemente. O Google Stadia, uma das principais plataformas de cloud gaming, fechou seus estúdios de produção de jogos no início deste mês, em Montreal e Los Angeles, sem que nenhum deles tivesse chegado a lançar um jogo, segundo o site Kotaku.
Música e audiovisual passaram um bom tempo na corrida para o streaming antes de se consolidarem no formato. Já os jogos eletrônicos entraram no páreo para valer só recentemente.
“Se eu for pensar num ano marco para cloud gaming seria 2019”, afirma Roberto Tadeu Rodrigues, especialista em telecomunicações com ênfase em games. Apesar de já ter havido iniciativas anteriores à data, foi há dois anos que vários gigantes começaram a emergir no mercado, como o xCloud, da Microsoft, e o Google Stadia.
“Em música, desde que surgiram os primeiros aplicativos até que se chegasse a um momento em que dá para dizer que todo mundo usa um Spotify, um Deezer ou um similar, demorou mais ou menos 13 anos”, diz Rodrigues. “No vídeo, desde o surgimento da Netflix até poder dizer que é normal ter uma assinatura, foram uns dez anos.”
Sony, Nvidia, Google e Amazon —as principais empresas que trabalham com games— já têm os seus serviços de cloud gaming, mas por enquanto a maioria não fez acenos ao público brasileiro.
O serviço de nuvem PlayStation Now, por exemplo, existe desde 2014. Mas ele está em poucos países e atende a um público muito específico, diz o especialista em telecom.
A exceção, por enquanto, é a Microsoft, dona do Xbox, que lançou no Brasil o xCloud em versão beta, isto é, fase de testes para um grupo restrito de jogadores por tempo limitado.
Mas por que o streaming de games tem ainda tanto chão pela frente, se comparado aos seus equivalentes nas áreas de música e audiovisual?
Uma primeira resposta tem a ver com a natureza técnica das três linguagens.
Com música e vídeo, o usuário apenas recebe dados. No cloud gaming, o que vai precisa voltar —e rápido. “Quando aperta o botão no controle, você envia um pacote de dados que é processado na nuvem e você recebe de volta aquela imagem com a ação que você fez”, explica Rodrigues.
E tudo isso tem de acontecer em um espaço de tempo bem curto para que o jogador tenha a sensação de fluidez no game e não perceba o “lag”, ou seja, um atraso de resposta.
“O número mágico para isso é de mais ou menos 1,6 milissegundo”, diz o especialista —uma piscada de olho leva em média 140 milissegundos.
Por outro lado, é preciso também provar a produtores de jogos e a jogadores que vale a pena pular para o novo modelo de consumo de games.
“A principal dificuldade do cloud gaming é que ele precisa crescer para os dois lados — para o lado dos estúdios e para o lado do público”, diz Leandro Montoya, executivo na área de entretenimento digital.
“Por enquanto, os desenvolvedores preferem publicar nas plataformas tradicionais, porque isso já dá uma receita muito grande. No cloud, ganhariam só uma porcentagem da assinatura.” O longo prazo traria ganhos de escala, mas o problema é saber quando e como dar o salto de fé.
E, para os jogadores, é fundamental provar que os jogos na nuvem terão a mesma fluidez que a de um console. Essa tarefa é especialmente difícil num país com uma infraestrutura de telecomunicações instável como a brasileira, principalmente fora dos grandes centros urbanos. O futuro próximo dependerá ainda de quando e como chegará ao país a 5G, nova geração de tecnologia sem fio.
Mas o Brasil tem uma vantagem que poucos países têm, um enorme público ainda não explorado e que muitas vezes acaba se satisfazendo com a pirataria.
Pegue o elogiado “Zelda: Breath of the Wild”, por exemplo, que foi lançado há quase quatro anos. O jogo custa R$ 300 na loja online da Nintendo. Para grande parte dos brasileiros, pagar um valor desse num game é uma extravagância.
“A gente não sente isso quando está pagando um Disney+, uma Netflix. Parece mais como uma troca de valor justa”, diz Leandro Montoya. “A Netflix estourou no Brasil com uma assinatura que começou a um preço bem baixo e conseguiu atingir um público que usava pirataria.”
“Tem muita gente que gostaria de jogar os jogos que estão nos consoles, só que ao mesmo tempo não quer pagar R$ 5.000 num hardware”, diz Roberto Tadeu Rodrigues.
“A pessoa pensa: eu sou casado, tenho filho, trabalho. Vou ter que gastar tudo isso para jogar de vez em quando? Se o cloud gaming deixa o cara jogar franquias famosas do universo dos games e não somente os jogos de celular, a um custo de uma assinatura próximo aos do Spotify e Netflix, por exemplo, aí é onde está a grande sacada do modelo.”
O streaming é um caminho sem volta, na opinião de Carolina Caravana, vice-presidente da Abragames, Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos. “Não vejo como uma corrida. É naturalmente para onde todo mundo está se voltando”, diz.
O cloud gaming pode trazer mais dinamismo à cena gamer brasileira, mas a nova tecnologia não deve acabar de vez com a pirataria nem transformar o Brasil na Polônia, referência na área, de uma hora para a outra, segundo Caravana.
Para provar seu ponto, ela lembra quando o hoje gigante do vídeo sob demanda era uma empresa de entrega de DVDs pelo correio. “A Netflix, antes de se transformar em streaming, criou uma demanda no público. O consumidor ficou acostumado a comprar produtos audiovisuais pela internet, ainda que fosse mídia física, sem ter de sair de casa.”
Nesse cenário de preparar o campo, pode ser que o Brasil esteja no caminho certo. Caravana não dá spoiler, mas diz que já tem gente por aqui trabalhando na criação de demanda por cloud gaming. Cenas do próximo capítulo.