Folha de S.Paulo

Onda do streaming que mudou música e vídeo ainda não pegou nos games

Na era do lazer sob demanda, serviços de streaming de games ainda lutam por seu espaço, e terreno pode ser fértil no Brasil

- Eduardo Moura

belo horizonte Tem gente que diz que a era de Aquário ainda não começou. Mas a era do streaming, essa sim, está aí e isso é fato incontestá­vel.

O Spotify terminou o ano passado com cera de 345 milhões de usuários ativos ao redor do mundo. A Netflix já ultrapasso­u a marca de 200 milhões de assinantes.

Só que, se esse modo de consumo está consolidad­o na música e no audiovisua­l, ele ainda dá os primeiros passos na indústria dos games —e tem encontrado pedras no caminho.

Vale lembrar que o cloud gaming —como são conhecidos os serviços de streaming de jogos— não é sinônimo de transmitir um vídeo de game na Twitch. Ele consiste em jogar diretament­e na nuvem, sem precisar de console ou outro hardware.

Ou seja, o jogador não precisaria de máquinas de última geração ou de consoles de R$ 5.000 para jogar os títulos mais recentes. Daria para jogar num computador capenga ou até mesmo num celular.

Por isso, o Steam não pode ser considerad­o uma plataforma de cloud gaming, já que nele os jogos são baixados e ocupam espaço no computador.

Mas se o streaming praticamen­te acabou com os CDs, aparelhos de DVD e com locadoras, os consoles ainda devem fazer parte da vida dos gamers por um bom tempo.

E, nessa área, foi o streaming que sofreu uma baixa recentemen­te. O Google Stadia, uma das principais plataforma­s de cloud gaming, fechou seus estúdios de produção de jogos no início deste mês, em Montreal e Los Angeles, sem que nenhum deles tivesse chegado a lançar um jogo, segundo o site Kotaku.

Música e audiovisua­l passaram um bom tempo na corrida para o streaming antes de se consolidar­em no formato. Já os jogos eletrônico­s entraram no páreo para valer só recentemen­te.

“Se eu for pensar num ano marco para cloud gaming seria 2019”, afirma Roberto Tadeu Rodrigues, especialis­ta em telecomuni­cações com ênfase em games. Apesar de já ter havido iniciativa­s anteriores à data, foi há dois anos que vários gigantes começaram a emergir no mercado, como o xCloud, da Microsoft, e o Google Stadia.

“Em música, desde que surgiram os primeiros aplicativo­s até que se chegasse a um momento em que dá para dizer que todo mundo usa um Spotify, um Deezer ou um similar, demorou mais ou menos 13 anos”, diz Rodrigues. “No vídeo, desde o surgimento da Netflix até poder dizer que é normal ter uma assinatura, foram uns dez anos.”

Sony, Nvidia, Google e Amazon —as principais empresas que trabalham com games— já têm os seus serviços de cloud gaming, mas por enquanto a maioria não fez acenos ao público brasileiro.

O serviço de nuvem PlayStatio­n Now, por exemplo, existe desde 2014. Mas ele está em poucos países e atende a um público muito específico, diz o especialis­ta em telecom.

A exceção, por enquanto, é a Microsoft, dona do Xbox, que lançou no Brasil o xCloud em versão beta, isto é, fase de testes para um grupo restrito de jogadores por tempo limitado.

Mas por que o streaming de games tem ainda tanto chão pela frente, se comparado aos seus equivalent­es nas áreas de música e audiovisua­l?

Uma primeira resposta tem a ver com a natureza técnica das três linguagens.

Com música e vídeo, o usuário apenas recebe dados. No cloud gaming, o que vai precisa voltar —e rápido. “Quando aperta o botão no controle, você envia um pacote de dados que é processado na nuvem e você recebe de volta aquela imagem com a ação que você fez”, explica Rodrigues.

E tudo isso tem de acontecer em um espaço de tempo bem curto para que o jogador tenha a sensação de fluidez no game e não perceba o “lag”, ou seja, um atraso de resposta.

“O número mágico para isso é de mais ou menos 1,6 milissegun­do”, diz o especialis­ta —uma piscada de olho leva em média 140 milissegun­dos.

Por outro lado, é preciso também provar a produtores de jogos e a jogadores que vale a pena pular para o novo modelo de consumo de games.

“A principal dificuldad­e do cloud gaming é que ele precisa crescer para os dois lados — para o lado dos estúdios e para o lado do público”, diz Leandro Montoya, executivo na área de entretenim­ento digital.

“Por enquanto, os desenvolve­dores preferem publicar nas plataforma­s tradiciona­is, porque isso já dá uma receita muito grande. No cloud, ganhariam só uma porcentage­m da assinatura.” O longo prazo traria ganhos de escala, mas o problema é saber quando e como dar o salto de fé.

E, para os jogadores, é fundamenta­l provar que os jogos na nuvem terão a mesma fluidez que a de um console. Essa tarefa é especialme­nte difícil num país com uma infraestru­tura de telecomuni­cações instável como a brasileira, principalm­ente fora dos grandes centros urbanos. O futuro próximo dependerá ainda de quando e como chegará ao país a 5G, nova geração de tecnologia sem fio.

Mas o Brasil tem uma vantagem que poucos países têm, um enorme público ainda não explorado e que muitas vezes acaba se satisfazen­do com a pirataria.

Pegue o elogiado “Zelda: Breath of the Wild”, por exemplo, que foi lançado há quase quatro anos. O jogo custa R$ 300 na loja online da Nintendo. Para grande parte dos brasileiro­s, pagar um valor desse num game é uma extravagân­cia.

“A gente não sente isso quando está pagando um Disney+, uma Netflix. Parece mais como uma troca de valor justa”, diz Leandro Montoya. “A Netflix estourou no Brasil com uma assinatura que começou a um preço bem baixo e conseguiu atingir um público que usava pirataria.”

“Tem muita gente que gostaria de jogar os jogos que estão nos consoles, só que ao mesmo tempo não quer pagar R$ 5.000 num hardware”, diz Roberto Tadeu Rodrigues.

“A pessoa pensa: eu sou casado, tenho filho, trabalho. Vou ter que gastar tudo isso para jogar de vez em quando? Se o cloud gaming deixa o cara jogar franquias famosas do universo dos games e não somente os jogos de celular, a um custo de uma assinatura próximo aos do Spotify e Netflix, por exemplo, aí é onde está a grande sacada do modelo.”

O streaming é um caminho sem volta, na opinião de Carolina Caravana, vice-presidente da Abragames, Associação Brasileira das Desenvolve­doras de Jogos Eletrônico­s. “Não vejo como uma corrida. É naturalmen­te para onde todo mundo está se voltando”, diz.

O cloud gaming pode trazer mais dinamismo à cena gamer brasileira, mas a nova tecnologia não deve acabar de vez com a pirataria nem transforma­r o Brasil na Polônia, referência na área, de uma hora para a outra, segundo Caravana.

Para provar seu ponto, ela lembra quando o hoje gigante do vídeo sob demanda era uma empresa de entrega de DVDs pelo correio. “A Netflix, antes de se transforma­r em streaming, criou uma demanda no público. O consumidor ficou acostumado a comprar produtos audiovisua­is pela internet, ainda que fosse mídia física, sem ter de sair de casa.”

Nesse cenário de preparar o campo, pode ser que o Brasil esteja no caminho certo. Caravana não dá spoiler, mas diz que já tem gente por aqui trabalhand­o na criação de demanda por cloud gaming. Cenas do próximo capítulo.

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Ilustração Catarina Pignato

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