Governo admite paralisia da reforma agrária
Incra informou ao STF que gestão Bolsonaro zerou desapropriação; especialistas veem crime de responsabilidade
brasília A cúpula do Incra (órgão federal de reforma agrária) informou ao STF (Supremo Tribunal Federal) que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) zerou a edição de decretos de desapropriação para reforma agrária e fez a menor aquisição de terras com essa finalidade desde 1995, mais antigo ano na comparação.
Além disso, nunca houve orçamento tão baixo para aquisição de terras, levando em conta gráfico apresentado, com dados de 2011 a 2020.
Sob Bolsonaro houve, ainda, menos famílias assentadas que nos dois anos de Michel Temer. E bem menos assentamentos que nos governos FHC, Lula e Dilma.
A comparação entre governos foi feita em documento assinado pelo presidente do órgão, Geraldo Melo Filho, e por quatro diretores do Incra.
Os gestores admitiram ao STF, com gráficos de comparações entre governos, a paralisia de desapropriações e novos assentamentos. Disseram que já era tendência recente.
O presidente e os diretores, porém, negaram que isso signifique a paralisação completa da reforma agrária. Segundo eles, o foco da atual gestão é a regularização fundiária, a titulação de terras já distribuídas e a melhoria da infraestrutura de assentamentos.
Segundo o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), há 80 mil famílias acampadas à espera de terra. Entre 25 mil e 30 mil delas estão no Nordeste. “Após a vacinação, a luta pela terra vai ser retomada com força, diante dessa ideia do Incra de fazer concentração de terra”, diz Alexandre Conceição, da coordenação nacional do MST.
A reforma agrária é uma previsão constitucional. O artigo 184 diz que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante indenização”.
Já o artigo 188 prevê a destinação de terras públicas para o plano nacional de reforma.
A inação do governo é listada por críticos e especialistas como crime de responsabilidade, passível de impeachment. Na Câmara, há mais de 60 pedidos de impedimento.
O documento do Incra foi concluído no último dia 9. A peça foi protocolada no curso de ação proposta no STF por entidades sindicais do campo, que questionam a paralisia deliberada da reforma agrária.
Documento do próprio Incra, de outubro, já registrava a paralisia de 413 processos, como a Folha mostrou em 9 de dezembro. Contag e Contraf (Confederações Nacionais dos Trabalhadores na Agricultura e na Agricultura Familiar) usaram esse dado na ação.
Agora, o Incra abriu ao relator da ação no STF, ministro Marco Aurélio Mello, novas informações sobre o desempenho da reforma agrária. Um gráfico sobre decretos de desapropriação nos últimos 25 anos mostra a curva no zero em 2019 e em 2020. A cúpula do Incra não informa o número de decretos.
A Folha consultou todos os decretos editados por Bolsonaro e não encontrou nenhum destinado à desapropriação para reforma agrária. “A diminuição da incorporação de novos imóveis para a reforma agrária pela via onerosa já vinha de longa data, passando por vários governos”, afirma a diretoria do Incra.
Sob Bolsonaro, o Incra incorporou apenas 1,5 mil hectares em 2019 e 1,4 mil em 2020.
Em dois anos e meio de Temer, foram 664 mil hectares. Em cinco anos de Dilma, 3,1 milhões. Em oito de Lula, 47,6 milhões. E em oito de FHC, 20,8 milhões. A comparação é da própria diretoria do Incra.
O governo também vem assentando menos famílias. Em dois anos, foram 9,2 mil. Nas gestões anteriores, conforme o Incra, foram 540,7 mil (FHC), 614 mil (Lula), 133,6 mil (Dilma) e 11,8 mil (Temer).
“A partir dos governos Dilma e Temer, passou-se a adotar uma política mais preocupada com qualidade dos assentamentos da reforma agrária e condições de vida das famílias beneficiárias”, argumentaram os gestores do Incra.
A gestão Bolsonaro destinou R$ 12,2 milhões à aquisição de terras em 2020. Em 2011, eram R$ 930 milhões, ou R$ 1,6 bilhão, corrigidos pela inflação.
“O termo ‘reforma agrária’ não pode ser resumido à aquisição e destinação de terras por meio da criação de projetos de assentamento, sendo possível estarem inseridas formas complementares de destinação das terras agricultáveis do país, a exemplo da regularização fundiária”, afirma o Incra no documento.
Segundo o Incra, a reforma agrária dispõe no Brasil de 87,5 milhões de hectares de terras, distribuídos em 9,4 mil projetos de assentamento, onde vivem 967 mil famílias.
O órgão afirma existirem 203 imóveis rurais com ações de desapropriação ajuizadas na Justiça. “Circunstâncias não controladas pela autarquia, na maior parte das vezes decorrentes de discussões judiciais no âmbito das ações de desapropriação, levam a que não seja deferida a imissão provisória na posse”, diz.
O valor já depositado é de quase R$ 1 bilhão, segundo o órgão. O Incra diz fazer inspeção por “lotes vagos” em assentamentos, além de ações de regularização fundiária na Amazônia. Outra frente é a entrega de títulos aos ocupantes dos imóveis. No governo Bolsonaro, segundo o Incra, foram 119,9 mil titulações.
Para Fabiana Scoleso, doutora em história social e professora da Universidade Federal do Tocantins, o foco atual nas titulações destoa da política de priorizar titulação às mulheres e significa um “deslocamento do eixo” da agricultura familiar para o agronegócio.