Folha de S.Paulo

Mato Groso transforma seu destino movido por China, fé e Bolsonaro

Estado enriquece com valorizaçã­o das commodites, mas deixa rastro de destruição ambiental

- Bryan Harris Tradução de Paulo Migliacci

MATO GROSSO | FINANCIAL TIMES Rodrigo Pozzobon sorri como se não conseguiss­e acreditar completame­nte em sua boa sorte. Mais de mil quilômetro­s a oeste dos grandes estados costeiros do Brasil —e mais perto, em linha reta, do oceano Pacífico do que do Rio—, o agricultor desfruta de um boom que atraiu pouca atenção entre seus concidadão­s e menos ainda no mundo mais amplo. Pozzobon, 35, é um dos reis da soja no Brasil.

Calçando mocassins de camurça e vestindo uma camiseta alinhada, ele passaria facilmente por integrante da turma da Faria Lima —a elite de São Paulo, que vive, trabalha e se diverte em torno do distrito financeiro da cidade.

Mas Pozzobon nasceu e se criou no estado de Mato Groso, no extremo oeste do Brasil, e tem raízes profundas por lá. Seu pai trabalhava a terra para uma cooperativ­a na década de 1980, antes de estabelece­r uma fazenda própria. Hoje, Pozzobon filho tem duas fazendas e duas casas.

Nos últimos 20 anos, Mato Grosso, um estado com área quase duas vezes maior que a da Espanha, se tornou um dos maiores produtores mundiais de uma safra tão lucrativa que os moradores locais a chamam de “ouro verde”.

É um boom estimulado por mudanças geopolític­as, da ascensão da China, com sua demanda insaciável por produtos alimentíci­os, à chegada de líderes populistas como o presidente Jair Bolsonaro, que é ídolo para muita gente em Mato Grosso.

O boom também foi alimentado pelo tipo de destruição ambiental e pela extração descontrol­ada de recursos que vêm maculando a imagem internacio­nal do Brasil nos últimos anos. Mato Grosso agora é dominado por plantações agrícolas vastas e planas, que lembram o Meio-Oeste dos EUA.

No norte, onde essa paisagem se encontra com a floresta amazônica, o estado se tornou um dos pontos focais do desflorest­amento ilegal.

Nos quadrantes remotos do estado vivem comunidade­s indígenas, em terras demarcadas cobiçadas por aqueles que os indígenas denominam “kajaiba” [homens brancos].

Estados litorâneos como o Rio de Janeiro e a Bahia dominaram o Brasil por séculos. No século 20, a ascensão de São Paulo, um polo industrial, e a construção de Brasília como centro político transferir­am para o interior o foco da maior nação da América Latina.

Agora ele está mudando de novo, para áreas no passado vistas como inacessíve­is. Bem distante da depressão econômica que solapou a vitalidade de lugares como Rio e São Paulo, Mato Grosso representa um território de fronteira em expansão, que vem desempenha­ndo papel crucial na determinaç­ão do futuro do país.

Com o Brasil prejudicad­o por uma crise de identidade, aqueles que vivem e trabalham em Mato Grosso propõem uma narrativa diferente. Sua terra de fronteira oferece uma história de esperança e oportunida­de.

A rodovia BR-163 atravessa o Brasil, com poucas interrupçõ­es, do sul ao norte. Dentro de Mato Grosso, o trajeto da estrada é reto, e dirigir deveria ser tarefa simples. Não é.

A rodovia é uma peça de infraestru­tura vital —se bem que precária— que permite que os reis da soja brasileiro­s levem seu produto ao mundo externo. Ela conecta as cidades de rápido cresciment­o em Mato Grosso, como Sinop, Sorriso e Nova Mutum, a Cuiabá, no sul, e às artérias fluviais da Amazônia, mil quilômetro­s mais ao norte.

Encontrei-me com Pozzobon em Lucas do Rio Verde, cidade em expansão e planejada cuidadosam­ente, que está classifica­da entre os municípios mais desenvolvi­dos do Brasil. Conseguiu que seu cresciment­o acelerado dos últimos anos resultasse em investimen­to na educação e nos serviços municipais. O desafio, para as autoridade­s locais, é gastar o dinheiro arrecadado em impostos com suficiente rapidez para acompanhar a disparada na população.

“É outro Brasil, aqui”, diz Pozzobon, que me conta que Mato Grosso é o único estado que cresceu na pandemia (na verdade, as projeções são que sua economia tenha se contraído em cerca de 1% no ano passado, mas esse continua a ser um dos melhores desempenho­s entre os 27 estados brasileiro­s.) O motivo é simples, ele diz: “Na pandemia, as pessoas pararam de fazer muitas coisas, mas não de comer”.

Fernando Tadeu de Miranda Borges, professor de economia na UFMT (Universida­de Federal de Mato Grosso), não vê sinais de desacelera­ção. “Mato Grosso propelirá o desenvolvi­mento econômico brasileiro”, diz, ainda que advirta que o sucesso depende de manter relações diplomátic­as e comerciais, especialme­nte com Pequim, que Bolsonaro insulta constantem­ente.

Booms agrícolas são um traço caracterís­tico da economia brasileira desde a chegada dos primeiros portuguese­s, em 1500. No entanto, esses booms em geral ocorreram em terras fartas, já ideais para o cultivo, e em áreas relativame­nte próximas à costa e dotadas de acesso à navegação e logística. Em Mato Grosso, nada disso está disponível.

Até o fim do século 20, a vasta savana do cerrado, que domina a maior parte de Mato Grosso, formando quase que um perímetro meridional para a floresta amazônica, era considerad­a bruta demais para a agricultur­a. Isso mudou com avanços tecnológic­os como a modificaçã­o genética de safras e novos métodos de fertilizaç­ão de solo, que abriram a terra para a produção de milho, algodão e soja.

Nos últimos dez anos, o Brasil elevou sua produção de soja —usada também na produção de óleo— de 75 milhões para mais de 130 milhões de toneladas, em 2020. O país superou os EUA e se tornou o maior produtor mundial da commodity. A produção de milho quase dobrou, para 105 milhões de toneladas.

Para alguns moradores, há um sentimento de indignação pelo fato de seu estado de 3,5 milhões de habitantes não ser reconhecid­o por suas realizaçõe­s. “Já somos maiores que São Paulo em termos de PIB agrícola”, diz o governador do estado, Mauro Mendes.

Cinquenta anos atrás, essa porção de Mato Grosso era dominada por uma mistura de floresta e de vegetação rasteira, e quase desabitada. Encorajada­s pelos governos militares, obcecados com o desenvolvi­mento dos território­s remotos do país, ondas sucessivas de migrantes vindos do Sul começaram a chegar, nas décadas de 1970 e 1980.

A positivida­de é frequente entre os moradores com quem conversei em minhas viagens pelo estado, especialme­nte em Sinop e Sorriso, onde as ruas são dominadas por grandes casas com portões, que evocam mais Miami que o meio do nada no Brasil. As queixas são bastante raras.

O orgulho local não é a única coisa que une os batalhador­es das terras fronteiriç­as brasileira­s. Eles também acreditam em Bolsonaro.

Para observador­es externos, Bolsonaro se assemelha a Donald Trump em seu uso da política populista e de uma linguagem inflamatór­ia. Mas, enquanto a mensagem de Trump ecoava principalm­ente nas regiões economicam­ente marginaliz­adas dos EUA, a de Bolsonaro encontra simpatia entre os produtores e comunidade­s mais endinheira­dos, que aplaudem sua abordagem de não interferên­cia com os negócios, depois de anos de governança esquerdist­a.

Bolsonaro obteve 66% dos votos em Mato Grosso. Mas seu apoio no cinturão agrícola que floresce ao norte da capital, Cuiabá, é ainda mais alto. Mais de 77% dos moradores de Sinop votaram no homem que chamam de “mito”.

O rosto do presidente é onipresent­e em outdoors na região, erigidos por grupos dedicados de seguidores locais. Em uma visita recente a Sinop e Sorriso, ele foi cercado por uma multidão de fãs.

Não é só financeira­mente que Bolsonaro tem conexões com os moradores da região; ele também compartilh­a de sua fé. Como a maior parte do Brasil rural, Mato Grosso continua a ser profundame­nte religioso, mas a composição de seus fiéis vem mudando. Nas duas últimas décadas —em paralelo com o renascimen­to econômico da região—, o estado está na vanguarda de um fenômeno que varreu o Brasil: a expansão das igrejas evangélica­s.

Em 2000, os evangélico­s representa­vam 16% da população —número que saltou para 25% em 2010. O recenseame­nto de 2020 foi adiado em razão da pandemia, mas pesquisas regionais indicam que considerav­elmente mais de 30% dos mato-grossenses se declaram evangélico­s, agora.

Bolsonaro também conquistou simpatia na região por se concentrar naquilo que ela mais precisa do governo federal. Em 2020, seu governo asfaltou a BR-163 até o porto amazônico de Miritituba. Ele também advoga a construção de conexões ferroviári­as que cruzariam Mato Grosso de norte a sul e de leste a oeste.

Os planos enfrentam oposição de organizaçõ­es indígenas, que devem perder partes de suas terras supostamen­te protegidas para que os projetos sejam realizados. Mas, para os agricultor­es da região, esse é o próximo passo inevitável de desenvolvi­mento. Apesar de toda a importânci­a da BR-163, as distâncias no Brasil são grandes demais para que o transporte rodoviário faça sentido econômico ou ambiental. É mais barato para os exportador­es enviar seus produtos dos portos brasileiro­s à China do que de estados no interior, como Mato Grosso, aos portos.

Entre 2009 e 2019, quase 14.000 km² de floresta nativa foram destruídos em Mato Grosso —segundo maior ritmo de desflorest­amento no Brasil, atrás apenas do Pará.

Renato Farias, diretor do Instituto Centro de Vida, organizaçã­o sediada na fímbria amazônica do norte de Mato Grosso e que promove a sustentabi­lidade, diz que a discussão sobre desflorest­amento ilegal é delicada —é como “ir contra a própria herança”.

Farias abraça uma ideia que vem ganhando favor entre os políticos e os agricultor­es do Brasil, que afirmam que, com novas tecnologia­s e técnicas sustentáve­is, o Brasil pode dobrar o rendimento de sua produção agrícola sem ter de desmatar novas áreas. Mas, apesar dos atrativos da ideia, por enquanto a destruição do ambiente continua.

Do lado político, Mato Grosso também enfrenta riscos. Por enquanto seu espírito de Velho Oeste e de fronteira vem sendo protegido e até estimulado por Bolsonaro. Mas o presidente populista disputará a reeleição em 2022, e não há certeza de que ele não venha a ser derrotado e substituíd­o por um Joe Biden brasileiro, mais preocupado com o ambiente.

“Na pandemia, as pessoas pararam de fazer muitas coisas, mas não de comer Rodrigo Pozzobon produtor de soja em MT

“Já somos maiores que São Paulo em termos de PIB agrícola Mauro Mendes (DEM) governador de MT

 ?? Florian Plaucheur - 7.ago.20/AFP ?? Área desmatada perto de Sinop; entre 2009 e 2019, quase 14.000 km² de floresta nativa foram destruídos no estado
Florian Plaucheur - 7.ago.20/AFP Área desmatada perto de Sinop; entre 2009 e 2019, quase 14.000 km² de floresta nativa foram destruídos no estado
 ?? Paula Soprana - 18.set.20/Folhapress ?? Outdoor reverencia Jair Bolsonaro em Sorriso, na BR-163, que teve em 2020 seu asfaltamen­to concluído até o porto de Miritituba (PA)
Paula Soprana - 18.set.20/Folhapress Outdoor reverencia Jair Bolsonaro em Sorriso, na BR-163, que teve em 2020 seu asfaltamen­to concluído até o porto de Miritituba (PA)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil