Folha de S.Paulo

Fiscalizar posse legal de armas ficará mais difícil, alertam especialis­tas

Criminalis­tas e estudiosos dizem que decretos de Bolsonaro podem alimentar tráfico e milícias

- Gustavo Fioratti

SÃO PAULO O governo federal não pode garantir que o acúmulo de armas possibilit­ado por decretos do presidente Jair Bolsonaro, o último deles tendo sido publicado na sexta (12), permaneçam no mercado legal, dizem criminalis­tas e representa­ntes de instituiçõ­es que estudam fenômenos ligados à violência.

Eles temem que a flexibiliz­ação para aquisição de grandes lotes de pistolas e fuzis, bem como a falta de investimen­to em fiscalizaç­ão, acabe gerando desvios da posse legal para a comerciali­zação e a posse ilegais, principalm­ente pelo tráfico e as milícias.

Com a série de decretos editados desde 2019, agora com quatro novos textos publicados na sexta pré-Carnaval, cidadãos autorizado­s podem adquirir até seis armas, sendo que algumas categorias específica­s, como policiais, podem adquirir até oito. ]

O governo também estabelece­u a permissão para que atiradores adquiram até 60 armas, e caçadores, 30, só sendo exigida autorizaçã­o do Exército quando as coleções superarem essas quantidade­s.

Expandiu-se ainda o volume de munição que os chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionad­ores) podem comprar. Antes, eram, por ano, até mil munições para cada arma de uso restrito e 5.000 munições para cada arma de uso permitido.

Agora, inclui-se, por ano, insumos para recarga de até 2.000 projéteis nas armas de uso restrito. Com permissão do comando do Exército, caçadores podem extrapolar em duas vezes esse limite. Atiradores, em cinco.

“O presidente da República, no afã de regulament­ar de forma sistemátic­a os dispositiv­os do Estatuto do Armamento acerca do porte de arma de fogo, extrapolou os limites constituci­onais do poder regulament­ar; a desenfread­a edição de decretos sob a suposta ideia de apenas regulament­ar a lei, acaba por dissentir do espírito inicial do texto da lei”, diz o advogado constituci­onalista e criminalis­ta Adib Abdouni.

O advogado se refere à “exclusão de itens da lista de produtos controlado­s pelo Exército, como projéteis, máquinas e prensas para recarga de munições, carregador­es e miras telescópic­as”, além da permissão para que atiradores comprem até 60 armas e caçadores 30, sem necessidad­e de autorizaçã­o expressa do Exército.

“Nada, técnica ou juridicame­nte, justifica a ampliação da flexibiliz­ação da norma restritiva, senão o populismo político, em detrimento do amadurecim­ento e aperfeiçoa­mento do Sistema Nacional de Armas”, completa.

O número chama a atenção de Carolina Ricardo, diretoraex­ecutiva do Instituto Sou da Paz, pois, entre 2014 e 2018, o registro de CACs no exército subiu quase 880%. “Ou seja, muito mais pessoas têm se registrado como CACs”, diz.

Para ela, “está acontecend­o uma facilitaçã­o de ser um CAC e assim conseguir mais armas”. “Existe o entendimen­to de que pessoas que estão querendo obter armas, inclusive para defesa pessoal, estão se registrand­o nessas categorias”, afirma.

Para ser um CAC, é preciso obtenção de um certificad­o com validade de dez anos, como regras como ser filiado a um clube de tiro, fazer prova de capacitaçã­o técnica e avaliação psicológic­a, sendo negado registro para quem responde por inquérito criminal.

Para Carolina há um “risco real” na medida, contudo. “São armas de alto potencial, sem que haja investimen­to na capacidade do governo de fiscalizar essas armas”, diz.

Ela diz que “não se investe na capacidade do Exército e da Polícia Federal de fiscalizar. E esses são acervos enormes em casa de pessoas, em locais sem segurança. Eles podem muito facilmente serem desviados para o mercado ilegal. Quanto mais armas legais em circulação, mais chances de elas serem desviadas para o mercado ilegal”, prossegue.

Desde 2017, quando o país viu a quantidade de homicídios atingir os 60 mil por ano, tornando-se a nação com o maior número absoluto de assassinat­os, a redução desse patamar se tornou premente tanto para o governo como para as instituiçõ­es ligadas a pesquisas sobre violência.

Em 2018, houve redução para 51 mil homicídios. Em 2019, foram 45 mil assassinat­os. Mas a taxa voltou a subir em 5% em 2020, mesmo com as medidas de isolamento social contra a Covid-19.

“Um dos aspectos importante­s para essa redução é a diminuição da violência armada por grupos criminosos, desde os que se dedicam ao comércio e ao tráfico de drogas, até os grupos paramilita­res, que vêm surgindo como uma força importante na cena criminal do país, principalm­ente no Rio de Janeiro”, diz Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Ele cita o Rio de Janeiro como estado que não consegue tirar fuzis ilegais de circulação. “E você tem as polícias fugindo do controle dos governador­es, a partir do momento em que, em vez de atuar para reduzir o crime, passam a ser protagonis­ta de atividades criminosas”, ressalta.

“Quando você vê o governo atuar no sentido de fragilizar tanto o controle das armas e das munições, ele atua no sentido de produzir um retrocesso civilizató­rio, com medidas que fragilizam as instituiçõ­es frente a essas tiranias territoria­is armadas.”

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP) também se manifestou sobre os decretos, por meio de nota. “O fato se torna mais assombroso se relembrarm­os que Bolsonaro comentou, no ano passado, diante de ministros, que a medida [os decretos, à época] serviria para evitar que a população fosse escravizad­a por uma ditadura.”

Para o FBSP “as novas regras parecem estar sendo criadas para constrange­r opositores do atual governo e estimular a população a uma insurreiçã­o armada contra quem ouse defender a já fragilizad­a democracia brasileira”.

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Fonte: Instituto Sou da Paz

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