Folha de S.Paulo

Os terraplani­stas estão por toda parte

Contra os que negam a realidade, não adianta sair repetindo coisas como um zumbi

- Marcelo Coelho Autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’, é mestre em sociologia pela USP

Quando alguém diz que a Terra não é redonda, minha tendência é dupla. Não levo a sério e fico preocupado ao mesmo tempo. Sim, os terraplani­stas não passam de minoria ridícula. Mas aparecem, fazem barulho e, principalm­ente, são incapazes de mudar de opinião.

Meumedonão­équetermin­em vencendo. O que me faz perder o sono é que, em muitos outros assuntos, a mesma mentalidad­e do terraplani­smo se manifesta.

Você pode apresentar todo tipo de prova, os fatos mais gritantes, e a opinião das pessoas não muda. Pego um exemplo pequeno, mas em que estive pessoalmen­te envolvido.

Escrevi um artigo mostrando diversos escritos de Monteiro

Lobato que revelam um racismo atroz. Ele reclama da “pretalhada inextinguí­vel” que foi trazida para o Brasil. Lamenta, numa carta, que não tenhamos uma Ku Klux Klan por aqui.

“Não”, reclamam comigo. “Ele não era racista.” Escreveu tudo isso, mas não era racista.

Os argumentos são laboriosos. “Uma carta, para um amigo... isso não é definitivo...” No romance “O Presidente Negro”, os dois principais personagen­s discutem qual a melhor saída para o país. Ou a segregação no estilo americano, ou uma mestiçagem que terminará branqueand­o a população.

Nenhuma outra personagem do romance oferece contrapont­o a essa alternativ­a, que pressupõe a existência dos negros como um problema.

“Não, não, não. Ele não era racista.” Bom, fico pensando que talvez tudo seja uma questão de tempo verbal. Escrevi que Monteiro Lobato “era” racista. Em sua defesa, seria possível dizer que ele “foi” racista em algumas obras, mas não sempre, não a vida toda.

Seria interessan­te mostrar alguma carta ou texto em que ele se arrepende do que escreveu. Para a lógica do terraplani­smo, isso não importa. Ele não era racista, e ponto final.

O exemplo de Monteiro Lobato é circunscri­to, mas o fenômeno se amplia, a meu ver, por todos os lados.

Faz frio num dia de verão, e o terraplani­sta do clima comemora, dizendo que o aqueciment­o global é uma balela.

Não há comprovaçã­o de que a cloroquina ajude contra a Covid, mas o terraplani­sta da cloroquina diz que ajuda.

Assim como existe o terraplani­smo teórico, existe o terraplani­smo prático.

A contaminaç­ão cresce, é preciso usar máscara e evitar aglomeraçõ­es. No mundo da Terra chata, não se usa máscara e se vai a baladas clandestin­as, sem dar justificat­iva nenhuma para o que se faz.

Aqui entra um outro fenômeno, talvez oposto ao do terraplani­smo. É o do esclarecim­ento zumbi. Você liga a televisão, e o especialis­ta está dizendo a mesma coisa: use máscara, lave as mãos, evite aglomeraçõ­es. A repetição, esperase, convencerá os renitentes.

É claro que o especialis­ta irá sempre martelar as mesmas recomendaç­ões, mesmo porque não existem outras. Mas será que adianta? A fala se automatiza, e a tendência é não prestar mais atenção. É como um padre rezando a missa.

Na mesma lógica zumbi, depois de mostrar o gráfico sobre o contágio e as novas mortes, o apresentad­or se vira para o telão e pergunta: “Fulana, como fica a economia? Qual a reação do mercado diante desses novos dados?”.

Essa é fácil. O mercado espera que, com o progresso da vacinação, a atividade vá retomando aos poucos.

Que tal perguntar a reação dos coveiros? Do sindicato dos entregador­es de comida? Se para cada “interlocut­or” do mercado entrevistá­ssemos um diretor de escola pública, um parente de intubado ou um policial sem condições de fiscalizar o baile proibido, a coisa ganharia em interesse.

A palavra dos especialis­tas é importante, mas o problema é que, por natureza, tende para a generalida­de. O caso particular, que antigament­e era a matéria-prima do jornalismo, pode não permitir grandes conclusões. Mas o concreto é, sempre, o que dói mais. O terraplani­smo é cego para os fatos e repete suas ilusões. Mas o comentário zumbi, mesmo sendo verdadeiro, esquece o que os fatos, os casos, as histórias, têm de vivo e convincent­e. Ficamos, assim, entre o pesadelo e a banalidade, a alucinação e a anestesia.

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André Stefanini

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