Biden quer abraçar Hollywood e escalar os seus astros para cargos políticos
Joe Biden quer abraçar Hollywood e escalar os seus astros para cargos políticos, reatando laços com os artistas desfeitos na era Trump
são paulo Em 2015, o então presidente Barack Obama respondia a Jimmy Kimmel, em seu talk show, que não, ele não ia à cozinha da Casa Branca de cueca no meio da noite, arrancando risadas da plateia. Em seguida, fez troça com a teoria conspiratória de que ele não seria americano, dizendo que o fato de ele não poder dirigir nada tem a ver com sua certidão de nascimento. Aplausos seguiram.
Quatro anos depois, quando chegou a sua vez de comandar os Estados Unidos, Donald Trump usou o Twitter para atacar os apresentadores à frente dos talk shows, os chamando de fracos e de sem talento. O contraste no tom pode parecer pouco relevante, mas ilustra bem como os dois ex-presidentes construíram —ou destruíram— suas relações com a TV e o cinema.
Obama era quase um anônimo para as telas quando lançou sua primeira candidatura e construiu uma relação próxima e amigável com o mundo do entretenimento. Enquanto isso, Trump entrou na Casa Branca como um ex-astro de reality show, com participações em filmes e séries no currículo, mas preferiu adotar uma postura de animosidade diante de Hollywood.
Agora, os americanos tentam decifrar qual abordagem Joe Biden, recém-eleito para a Casa Branca, deve tomar. A julgar por sua cerimônia de posse, com participações de Lady Gaga, Tom Hanks e Jennifer Lopez, o novo chefe do Executivo deve caminhar próximo da indústria cultural.
Mas a aliança com artistas é mais antiga do que a chegada ao cargo. Quando Kamala Harris foi anunciada como vice-presidente da chapa de Biden, a ex-senadora da Califórnia trouxe com ela celebridades dispostas a doar e a aparecer em eventos democratas, como Reese Witherspoon, Shonda Rhimes e J. J. Abrams.
Biden e Harris agora parecem querer recompensar a indústria pelo comprometimento. O novo presidente tem sondado importantes executivos do setor de entretenimento para compor seu governo. Nas apostas sobre quem deve assumir embaixadas estratégicas, na China ou no Reino Unido, os nomes que mais aparecem são o de Jeffrey Katzenberg, CEO da DreamWorks, e o de Bob Iger, presidente do conselho da Disney.
Além deles, Matt Walden, marido da presidente da Walt Disney Television, também pode assumir uma embaixada, enquanto Nicole Avant, mulher de Ted Sarandos, um dos CEOs da Netflix, que já serviu como embaixadora, deve voltar à diplomacia. Mais rápida que os colegas, Susan Rice deixou o conselho do gigante do streaming em dezembro para chefiar a equipe de política interna de Biden.
“Hollywood e Washington sempre tiveram uma relação de uso e de amor mútuos, com celebridades sendo grandes doadoras. Nos anos recentes, isso tem acontecido mais com os democratas, mas não podemos esquecer o ex-presidente republicano Ronald Reagan”, diz Jane Hall, ex-comentarista da Fox News e especialista em mídia e política da American University.
A presença de nomes importantes do setor de entretenimento em papéis igualmente importantes na capital americana deve garantir uma fusão entre as políticas de Biden e o mundo das artes, afirma Hall.
Quando serviu como vice, o atual presidente já havia sido celebrado por articular um acordo que facilitou a entrada de filmes americanos no mercado chinês, usando a via diplomática a favor dos interesses de Hollywood. Agora que ele ocupa a Casa Branca, a expectativa é que sua retórica mais amigável em relação a países estrangeiros facilite novas negociações.
Segundo uma especialista em política externa que trabalha com os principais estúdios americanos e prefere não ser identificada, a indústria está otimista diante de sinais do novo governo, que já deixou bem claro que haverá uma abordagem de compreensão em relação à China, o que ela chama de aproximação do país de forma holística.
Mas nem tudo são flores — pelo menos para os figurões do cinema e da TV. Historicamente os democratas são menos flexíveis quanto às leis antitruste dos Estados Unidos. Alguns especialistas acreditam que a compra da Fox pela Disney, durante o mandato de Trump, talvez não fosse aprovada sob um governo azul.
Ainda falando do poder regulatório do governo, outras visões que parecem díspares entre o republicano e Biden se referem ao combate à pirataria, negligenciado nos últimos anos. No mandato de Obama, novamente, o democrata se debruçou sobre o assunto, o que pode fazer com que a pauta volte a se tornar importante em sua agenda.
É cedo para cravar como Biden vai lidar com essas e outras questões pertinentes à indústria de cinema e TV, mas até agora ele se mostrou bastante aberto a seus interesses.
Antes de qualquer grande medida, no entanto, produtoras e o parque exibidor precisam desesperadamente se reerguer após o golpe que levaram por causa da Covid-19. Nesse sentido, Biden se mostra uma aposta mais segura que o antecessor —a The Lancet acaba de divulgar um relatório que afirma que as políticas de Trump fizeram aumentar as mortes pela doença.
Se o ex-presidente deixou claro no início de seu mandato que seu governo seria baseado na “paz pela força”, os democratas e sua relação quase obscena com Hollywood e seus grandes doadores parecem apontar para uma estratégia de soft power, visando ampliar seu carisma e popularidade, dizem analistas.
Os Obamas, afinal, não só apareciam em talk shows, como lançavam anualmente listas com seus filmes, séries, músicas e livros preferidos, convidavam artistas para se apresentarem na Casa Branca e agora comandam uma produtora que acaba de fechar contrato com a Netflix.
Enquanto isso, Trump sai da Casa Branca virando a cara para o mundo do entretenimento. No começo do mês, o ex-astro de reality se desfiliou do sindicato de atores dos Estados Unidos, que havia aberto uma ação disciplinar contra ele por causa dos ataques recentes ao Congresso.