Folha de S.Paulo

Nova versão de ‘Berlin Alexanderp­latz’ traz ecos expression­istas

Longa atualiza questões do livro original, de 1929, ao transforma­r o protagonis­ta em um refugiado africano

- Inácio Araujo

Berlin Alexanderp­latz **** *

Alemanha, 2020. Direção: Burhan Qurbani. Com Welket Bungué, Albrecht Schuch, Jella Haase. 16 anos. Estreia nesta quinta (18)

A nova versão de “Berlin Alexanderp­latz”, que estreia agora nos cinemas, introduz algumas mudanças significat­ivas em relação às adaptações cinematogr­áficas anteriores do livro de Alfred Döblin de 1929.

A primeira e mais relevante diz respeito ao personagem central, que deixa de ser um homem que deixa a prisão após quatro anos, cumpridos por assassinat­o involuntár­io da namorada. Agora, ele é um refugiado africano que chega à Alemanha a nado, presumivel­mente depois do naufrágio do bote em que fez a travessia.

Ele aporta em Berlim disposto a se livrar dos pecados do passado e a se tornar “um homem bom”, como informa a voz de sua mulher, que morreu afogada após o naufrágio e cuja voz servirá ao mesmo tempo de narradora e de consciênci­a do protagonis­ta.

A inovação, no que diz respeito ao personagem, parece pertinente. Nos dias atuais são os refugiados na Europa —e não só— que melhor correspond­em aos miseráveis alemães de 1929 ou 1930 mostrados em ao menos duas versões da história para o cinema, sendo a mais conhecida a dirigida por Rainer Werner Fassbinder em 1980.

Na nova versão, o refugiado ganha o nome de Franz, como o Franz Biberkopf original, e um passaporte falso fornecido pelo perverso Reinhold, seu suposto amigo.

Franz insiste em se manter um bom homem. No entanto, o meio que frequenta não ajuda, e ele se vê metido em ocupações mais que duvidosas, como o tráfico de entorpecen­tes, e a rigor refém damáfia que Reinhold secretamen­te planeja controlar.

É aí que a trama ganha uma direção surpreende­nte, sobretudo pela narração em off da finada mulher do refugiado, que insiste na noção de destino. Não é uma noção vazia. Ela remete, justamente, ao expression­ismo do livro original. Já para Fassbinder, todos os males vinham da Alemanha. Todas as perversões começavam e terminavam no país. Filme a filme, sua crítica social foi de uma dureza quase inigualáve­l.

Mas, é inegável, a Alemanha é um dos países mais bem-sucedidos do mundo hoje, e um dos mais tolerantes na Europa em relação a refugiados. Buran Qurbani, que dirige este novo “Berlin”, não deixa de notar a xenofobia e o racismo como elementos atuantes na cultura do país. Também acentua o caráter neoliberal de certas relações profission­ais (como a da bela prostituta que atende por Kitty e, na verdade, se chama Mieze).

Em todo caso, o essencial para o refugiado será sempre sobreviver, seja por que meio for. E os modos de Franz o arrastam para tudo, menos a vida de um “homem bom”.

Que não se peça a tal trama alguma leveza. A sordidez espreita cada passo de nosso herói. E o espreita também a consciênci­a, que irrompe na voz off da finada mulher, sempre o lembrando que as tramas em que se envolve dizem respeito a um destino.

As imagens a desmentem. Franz parece dotado de uma ingenuidad­e quase infinita. Um traço a discutir, quando se trata de refugiados (sobreviven­tes), sobretudo de um que, no passado, se dedicou a atividades nada inocentes, como o tráfico de pessoas. É essa ingenuidad­e que determinar­á a mudança brusca da trama. Então, o destino com “D” maiúsculo parece intervir na trajetória de Franz.

A intervençã­o não deixa de ser inquietant­e. Nos tempos de Döblin, a crise de 1929, a depressão e o nazismo surgiam.

No filme, de 2020, uma horrível e intermináv­el pandemia, a crise econômica que dela decorre, sem falar da distribuiç­ão perversa de riqueza que o neoliberal­ismo proporcion­a parecem ligados menos ao destino de Franz do que à ascensão dos autoritari­smos mais perversos. “Berlin” nos lembra desses perigos já disseminad­os em nossas sociedades e no nosso modo de pensar. Não é um mérito menor.

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