Folha de S.Paulo

Estamos vivendo uma tragédia com Bolsonaro, mas precisamos resistir

Vacinado contra Covid, autor de ‘Lavoura Arcaica’ defende candidatur­a de Lula em 2022

- Fernanda Canofre

A obra breve e celebrada de “um livro e meio”, as entrevista­s raras durante os anos e a troca da literatura pelas atividades em uma fazenda no interior de São Paulo, sem alarde, criaram uma aura de mistério e curiosidad­e em torno de Raduan Nassar, que ele parece pouco interessad­o em esclarecer, aos 85 anos.

Raduan aceitou o pedido de entrevista da Folha, desde que fosse por email. Em uma conversa rápida por vídeo para falar do prazo para as respostas pediu que fosse chamado apenas de “você” e questionou: “Por que eu sou chamado de senhor, hein?”.

Quem convive com ele conhece o jeito avesso a formalidad­es e carteirada­s.

Nas respostas, dedicou-se mais às questões de política. “Prefiro falar de política, e não de literatura”, diz.

Próximo a Lula, ele surpreende­u em 2016 ao discursar em público para defender a presidente Dilma Rousseff do processo de impeachmen­t, publicou artigos e fez críticas ao então vice e depois sucessor da petista, Michel Temer.

Uma dessas críticas, durante a entrega do Prêmio Camões, em 2017, irritou o então ministro da Cultura, Roberto Freire.

Sobre outras questões, para as quais muita gente espera respostas dele há anos, ele mantém o quase silêncio.

Em 1996, Otavio Frias Filho, então diretor de Redação da Folha, escreveu sobre “O silêncio de Raduan” e disse que sua decisão de parar de escrever permanecia um enigma.

Cerca de 20 anos antes, em uma entrevista à Folha, Raduan anunciou que não tinha mais interesse na literatura. O assunto, hoje, parece seguir longe da sua atenção.

Com a pandemia do novo coronavíru­s, Raduan diz que visitas se tornaram raras em seu apartament­o na Vila Madalena, em São Paulo.

Apenas colaborado­res, como Messias Barboza, seu assessor há quase 20 anos, são frequentes por lá para tratar de projetos como o destino da fazenda que ele doou à UFSCar (Universida­de Federal de São Carlos), no interior de São Paulo, ou a ideia de criação de um centro cultural para abrigar acervos históricos da região da fazenda Lagoa do Sino.

Apesar de um problema cardíaco há alguns anos, Raduan está bem de saúde. No dia 12 de fevereiro, saiu de casa para receber a primeira dose da vacina contra a Covid-19.

“Talvez a maior lição [da pandemia] seja reafirmar que precisamos viver, e conviver, de modo comunitári­o e solidário, e que o papel do Estado fica fortalecid­o como fator de proteção, sobretudo para os marginaliz­ados”, avalia.

Em 2016, você rompeu quase 20 anos de silêncio para se manifestar contra o processo de impeachmen­t da presidente Dilma. Passados cinco anos, como vê as consequênc­ias desse período? Senti, como todas as pessoas comprometi­das com o Estado democrátic­o de Direito, o dever de denunciar o golpe e a entrega de um projeto de nação que o Brasil esboçava construir.

Está aí a consequênc­ia: nossa soberania foi entregue, sob a batuta de um país do Norte, que pilotou um juiz entreguist­a e um promotor por controle remoto. O registro, do que antes era chamado de “delírio da esquerda”, se deu ao longo dos últimos anos quando assistimos as confissões de vários golpistas, sem o menor pudor, e por último a do general Eduardo Villas Bôas que consolida a farsa. A história será implacável com esses transgress­ores.

Em 2018, você estava ao lado de Lula na manifestaç­ão em Porto Alegre antes do julgamento dele, depois o visitou em Curitiba e defendeu que ele era um preso político. Aposta nele como candidato em 2022? Há outros nomes? Se o STF não se acovardar, é bem provável que Lula [que hoje está vetado pela Lei da Ficha Limpa] venha a se candidatar nas próximas eleições. O primeiro nome é sempre o de Lula, alguém com estatura de estadista. Caso seu nome, por razões espúrias, seja barrado novamente pelos militares, [Fernando] Haddad e [Flávio] Dino são nomes íntegros.

Em 2018 você afirmou que a força-tarefa da Lava Jato foi responsáve­l por destruir a soberania nacional e que ‘os operadores da Lava Jato, (…) não serão jamais absolvidos pela história, serão antes execrados, quem viver verá’. Como vê sua previsão hoje? A previsão foi correta, para quem acompanha a geopolític­a mundial nas últimas décadas não é difícil a leitura sobre o modo como os EUA agem para garantir o domínio sobre os seus “quintais” pelo mundo.

Estava claro ainda que, sob a aura de “heróis”, que a Lava Jato operava a favor de interesses internacio­nais, com a conivência de parte do Judiciário, o que se comprova com a revelação das mensagens trocadas entre aquele grupo de Curitiba [reportagen­s da Vaza Jato].

Alguns fatos não podem ser esquecidos, todo o prejuízo para nossa indústria, para a educação, saúde, ciência e economia, precisa ser colocado na conta do chamado “Tucanistão”. O PSDB de Aécio, de Serra e de FHC —este último não podia ser melindrado, segundo o marreco de Maringá— não admitiu a derrota nas urnas, foi partícipe do golpe, da entrega do pré-sal, ajudou a eleger Bolsonaro com o voto do BolsoDoria, e vota fechadinho com a agenda do presidente genocida e de seu ministro ‘Posto Ipiranga’.

Alguém se esquece do então ministro da Justiça, enfiado num governo de cor laranja, cheio de rachaduras e “rachadinha­s”, se referindo ao crime de caixa dois de Onyx Lorenzoni? Segundo Moro, “ele pediu desculpas”.

Você não é filiado a partido político, mas é de esquerda. O que significa isso? Considero-me de esquerda sim e fico com a bela definição de Pepe Mujica: “É uma posição filosófica perante a vida, onde a solidaried­ade prevalece sobre o egoísmo”.

Como viveu a notícia da eleição de Jair Bolsonaro em 2018? E como avalia estes dois anos de governo dele? Como uma tragédia. O Brasil não merece quem ocupa a cadeira do Planalto: economia devastada, miséria crescente, pior gestão mundial da pandemia, não temos vacinas, não temos estratégia para distribuir as vacinas, não temos seringas.

Como um chefe de Estado pode lamber as botas de um Trump, dando as costas para o resto do mundo e para as relações multilater­ais? Novamente o ciclo da história, ironicamen­te, apresenta as lições: como fica a política de vira-latas de nossas relações exteriores diante de uma possível guinada sob o comando de Joe Biden? E aquelas ofensas deplorávei­s contra a China e seu povo, em rede social?

No governo de Jair Bolsonaro pululam generais, ainda não consegui entender para quê...Provavelme­nte para dar um novo golpe em favor do inominável. Enquanto isso, o presidente passeia de jetski, sabota as restrições contra a propagação do vírus, deixa faltar oxigênio em Manaus, não apresenta plano de recuperaçã­o para o país, mas é rápido para propagande­ar medicament­os sem eficácia comprovada.

Vamos esperar o quê? Este governo é um desastre. Estamos vivendo uma tragédia, mas precisamos resistir, depois da vacinação é povo nas ruas.

O que acha dos pedidos de impeachmen­t contra Bolsonaro? Sou a favor, pelas maluquices que tem feito.

Em entrevista ao Folhetim da Folha, em 1984, você diz que já tinha pouco a ver com a literatura, que sua cabeça fervilhava, então, com outras coisas e que andava às voltas com agricultur­a. Anos depois, Otavio Frias Filho escreveu no jornal que a pergunta ‘Por que Raduan Nassar parou de escrever?’ continuava um enigma. Tem resposta hoje para ele? Não tenho.

Na mesma entrevista, você fala sobre seu início na literatura, que fora empurrado para ela e que alguém chamou assim anotações e reflexões soltas que você fazia. Parou totalmente com ela ou há textos na gaveta? Na gaveta, somente boletos a pagar...

Pensa ou tem vontade de voltar a escrever e/ou publicar? Nenhuma vontade.

Você também diz que não lê mais livros ou manchetes. Segue assim? Por quê? Não sei, a descobrir um dia. Talvez.

‘Torto Arado’, de Itamar Vieira Junior, traz uma citação de ‘Lavoura Arcaica’, na epígrafe. O autor é um baiano, funcionári­o do Incra, que já sofreu ameaças e defende a reforma agrária. Como alguém que tem relação com a terra e o mundo rural, como avalia essas questões? São ameaças inacreditá­veis, e pior é que são crimes que ainda ocorrem no campo. Tive a oportunida­de de ouvir uma entrevista de Itamar Vieira Junior pelo rádio e assistir ao Roda Viva, e recebi um exemplar de “Torto Arado”. Fiquei impression­ado, ele fala de forma ponderada, diz coisa com coisa.

Raduan Nassar, 85

Nascido em Pindorama (SP), cursou letras e direito na USP antes de se formar em filosofia. Autor de “Lavoura Arcaica”, “Um copo de cólera” e “Menina a caminho”

“Considerom­e de esquerda sim e fico com a bela definição de Pepe Mujica: ‘É uma posição filosófica perante a vida, onde a solidaried­ade prevalece sobre o egoísmo’

“O Brasil não merece quem ocupa a cadeira do Planalto: economia devastada, miséria crescente, pior gestão mundial da pandemia, não temos vacinas, não temos estratégia para distribuir as vacinas, não temos seringas

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Eduardo Knapp/Folhapress O escritor em seu apartament­o, em São Paulo

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