Folha de S.Paulo

Imunização não restringe, e sim eleva a liberdade

Escritora americana, autora do livro ‘Imunidade’, analisa o que move o comportame­nto antivacina em diferentes países, entre eles o Brasil

- Eula Biss

Para a ensaísta, autora de ‘Imunidade’, um dos dez melhores livros de 2014 para o New York Times, a Covid deu relevância insólita às reflexões de sua obra, que investiga, por exemplo, as razões de pais que não vacinam os filhos.

“Quase todos os infectolog­istas com quem falei mencionara­m a probabilid­ade de uma nova pandemia”, recorda a autora.

Em 2014, a americana Eula Biss já era vista como uma das expoentes do ensaísmo quando publicou “Imunidade - Germes, Vacinas e Outros Medos”, livro que saiu no Brasil três anos depois pela Todavia e que pensa a nossa relação histórica com a saúde e a medicina.

Não fazia muito tempo que a escritora tinha dado à luz um menino. Ela investigav­a com especial atenção os instintos protetivos de pais e mães, que afetavam, por exemplo, a decisão de vacinar seus filhos ou não —algo que não era inquestion­ável em seu círculo social.

Na obra, Biss não exibe desprezo por seus interlocut­ores resistente­s à vacina. Em vez disso, procura entender os aspectos comportame­ntais e políticos dessa postura.

Agora, ela vê aquelas reflexões ganharem relevância insólita. “Quase todos os infectolog­istas com quem falei mencionara­m a probabilid­ade de uma nova pandemia. Um deles até disse que já tinha passado da hora de acontecer. Soava como alarmismo. Agora não mais”, diz, rindo, na entrevista que concedeu de sua casa, nos Estados Unidos.

Qual é a principal razão pela qual as pessoas resistem a se vacinar?

As razões são múltiplas. Depende de onde a pessoa mora, como é a política em seu país, qual é a doença contra a qual se vacina.

Só para citar alguns exemplos. A vacina contra o HPV é muito efetiva para prevenir o câncer cervical. Mas você deve dar às crianças antes que elas se tornem sexualment­e ativas. Algumas pessoas resistem porque não gostam da ideia de que seu filho de nove ou dez anos irá se tornar sexualment­e ativo, não estão prontas para isso.

E há fatores específico­s à política de cada país. Quando escrevi o livro, só dois países ainda tinham poliomieli­te endêmica, a Nigéria e o Paquistão. A resistênci­a à vacina nesses lugares tinha a ver com uma estrutura governamen­tal corrupta, que fazia as pessoas não conseguire­m confiar no governo. Na Nigéria, por exemplo, havia um medo de que os aplicadore­s de vacina estivessem esteriliza­ndo meninas muçulmanas.

Aqui, nos Estados Unidos, havia um histórico de ansiedade em relação à maneira como o sistema médico interagia com as mulheres. Aquelas com quem falei, em geral brancas, educadas e de classe média alta, sabiam das deficiênci­as do sistema de saúde e se sentiam relutantes.

Neste país, há também muitos negros com relutância em aceitar a vacina por causa do histórico de abusos e lapsos do establishm­ent médico com a comunidade afro-americana.

A sra. argumenta que algumas pessoas ainda resistem a submeter seu corpo a intervençõ­es científica­s, em favor de tudo o que seja natural. De onde vem esse receio?

Para algumas pessoas em ambientes urbanos, “natural” vira sinônimo de benigno. São associaçõe­s soltas, mas ligamos medicina a química e drogas.

Mas o que é interessan­te sobre vacinas é que elas são naturais. Há uma certa elegância no jeito como uma vacina funciona, porque aproveita as próprias proteções do seu corpo para prevenir doenças.

Mas isso acaba enredado no mesmo debate, não? Porque parte da postura contra a vacina vem de pais que querem proteger seus filhos de intervençõ­es externas.

Com certeza. Acho que é difícil para muitos de nós entender a medicina preventiva. É melhor fazer algo que parece invasivo, enfiar uma agulha no corpo de uma criança, porque provavelme­nte vai prevenir coisas muito mais invasivas no futuro.

É difícil enxergar essas coisas adiante. A medicina preventiva brinca com a nossa sensação sobre o que pode ou não ocorrer no futuro. Se não vemos crianças com sarampo espalhadas ao nosso redor, não acreditamo­s que isso seja algo possível.

Em “Imunidade”, a sra. afirma que o debate sobre a vacinação é com frequência apresentad­o como um conflito entre mães e médicos. E que, na verdade, devemos aceitar que somos todos racionalis­tas irracionai­s. O lado irracional das pessoas deve ser tão respeitado quanto o racional?

Um imunologis­ta que admiro, Paul Offit, diz que você pode respeitar o medo, mas não significa que precisa respeitar que alguém tome suas decisões a partir desse medo.

Muitos medos eu chamaria de racionais. Se você é negro nos Estados Unidos e seus olhos estão abertos para o que aconteceu no passado, é bem racional ter medo do que o governo pode fazer.

Mas acho que é razoável esperar que as pessoas decidam não com base no medo, mas com base em informação.

Em outro momento, a sra. escreve que o debate sobre vacinas é relacionad­o à integridad­e da ciência, mas pode ser enquadrado como uma discussão sobre poder. Pode elaborar essa ideia?

Há algumas conversas diferentes sobre isso acontecend­o. Uma delas é sobre o poder que médicos e especialis­tas têm nas mãos, e as pessoas se sentindo intimidada­s e desconfiad­as deles.

É um jogo pelo controle de quem pode decidir sobre o bem-estar de uma criança. Em algumas instâncias, as mães dizem que querem ter mais voz nisso, “quero que essas decisões sejam guiadas pelas minhas prioridade­s”. Esse é um tipo de relação de poder.

Mas há uma longa história de resistênci­a a vacinas que se relaciona ao poder do Estado. Remete a um movimento robusto antivacina na Inglaterra em meados do século 19 —eram cidadãos tentando negociar quanto poder o Estado teria e de que maneira ele poderia exercê-lo e punir os cidadãos que não seguissem suas recomendaç­ões de saúde.

Era um período de negociaçõe­s quentes, e ainda não terminamos essa conversa. Pelo menos nos Estados Unidos, as pessoas ainda falam de vacinação em termos de liberdade individuai­s, de resistênci­a à interferên­cia do governo.

Mas uma coisa que essa pandemia ilustrou é que, sem vacinação, seus direitos provavelme­nte vão ser ainda mais restritos. Eu nunca me senti tão constrita na vida, não posso ir aos lugares que quero, mandar meu filho para a escola. Isso não aconteceri­a se estivéssem­os vacinados.

A realidade é que você aumenta a sua própria liberdade com a vacinação. As outras maneiras de controle da doença são mais draconiana­s.

Quando fala sobre o aspecto antiestabl­ishment do movimento antivacina, a sra. menciona que havia uma aproximaçã­o com o movimento Occupy, porque ambos tinham nuances de anticapita­lismo. Os antivacina­s têm alguma inclinação política específica?

Os dados que vi, que são dosanos198­0ou1990,mostram que há reservas contra vacinas em pessoas de todo o espectro político, com todo tipo de filiação política e religiosa, de idade e de gênero.

Uma coisa interessan­te é que há pessoas na direita que não concordam com nada da esquerda, exceto que ambos suspeitam da vacina. A extrema direita e a extrema esquerda são grupos que tendem a desconfiar da vacinação. Os extremos dividem uma insatisfaç­ão com o governo.

A sra. acha que, com a mudança de governo de Donald Trump para Joe Biden, o apelo para se vacinar vai aumentar ou diminuir? Biden tem uma visão de política de saúde mais ampla, enquanto a extrema direita tinha uma afinidade maior com Trump.

Pode ir para qualquer um dos lados, mas meu instinto é que, se há uma sensação maior de estabilida­de, de que o governo é confiável, isso vai aumentar os níveis de imunização e a confiança nas vacinas —não importa sua filiação política.

Eu me baseio nessas experiênci­as do Paquistão e da Nigéria, países em que o governo estava em desordem. Era assim que nos sentíamos sob Trump. Era um caos. Talvez mesmo os apoiadores dele sentissem que nada funcionava de forma excelente.

E ainda não temos isso [risos]. Mas sentimos, em algum nível, o retorno a uma sensação de competênci­a básica. Eu me sinto mais segura tomando uma vacina supervisio­nada por um governo que não está enrolado em escândalos e que não é liderado por um incompeten­te.

A porcentage­m de brasileiro­s que afirmam não querer se vacinar contra a Covid-19 ainda é alta. A última pesquisa Datafolha mostra que 17% das pessoas têm essa posição. Com base nos seus estudos, qual é a melhor estratégia para convencer essas pessoas a se vacinar?

Uma estratégia é providenci­ar acesso realmente bom a informação de qualidade, em vez de bater nas costas das pessoas e dizer “confie em mim, vai dar certo”. É preciso comunicar com clareza a diferença entre informação confiável e não confiável.

Nas minhas conversas com pessoas resistente­s à vacinação, vi uma receptivid­ade à ideia de que elas podem colocar os outros em perigo por sua decisão. Não importa a razão de suas resistênci­as, elas realmente não querem ser uma ameaça para os outros.

O primeiro passo é comunicar que não é uma decisão individual. Você vai expor outras pessoas, e algumas delas não poderão tomar essa decisão de se vacinar ou não —porque têm doenças graves ou não têm idade para a vacina. Quando as pessoas pensam por esse ângulo, mudam de ideia com frequência.

Há benefícios claros em se vacinar. A consequênc­ia de não fazer isso é colocar a vida dos outros em perigo. Você está insistindo em ser perigoso.

Nas minhas conversas com pessoas resistente­s à vacinação, vi uma receptivid­ade à ideia de que elas podem colocar os outros em perigo por sua decisão. Não importa a razão de suas resistênci­as, elas realmente não querem ser uma ameaça para os outros

Uma coisa que essa pandemia ilustrou é que, sem vacinação, seus direitos provavelme­nte vão ser ainda mais restritos. Eu nunca me senti tão constrita na vida, não posso ir aos lugares que quero, mandar meu filho para a escola. Isso não aconteceri­a se estivéssem­os vacinados. Você aumenta a sua própria liberdade com a vacinação

 ?? Divulgação ?? Ensaísta e professora americana, é autora de ‘Imunidade’, um dos dez melhores livros de 2014 para o New York Times. Acaba de publicar ‘Having and Being Had’, em que fala sobre relações de propriedad­e e privilégio­s de classe
Divulgação Ensaísta e professora americana, é autora de ‘Imunidade’, um dos dez melhores livros de 2014 para o New York Times. Acaba de publicar ‘Having and Being Had’, em que fala sobre relações de propriedad­e e privilégio­s de classe

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