Folha de S.Paulo

O general e o Supremo Tribunal Federal

Nação demanda estabilida­de e segurança para sua maturidade institucio­nal

- Pierpaolo Cruz Bottini Advogado, professor de direito penal da USP e ex-secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça (2005-2007; governo Lula)

Em 1892, Rui Barbosa impetrou um habeas corpus no STF em favor de presos políticos que contestava­m a legitimida­de do governo de Floriano Peixoto. Na véspera da sessão, dizse que o então marechal-presidente afirmou que, se o tribunal concedesse a liberdade aos presos, não se sabia quem daria habeas corpus aos ministros da corte, em clara ameaça aos seus integrante­s.

A passagem do tempo deveria sedimentar os ânimos exaltados de uma República nascente, mas não parece ser este o caso do Brasil. Cento e vinte e seis anos depois, quando o mesmo Supremo pautou o julgamento sobre um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o general Eduardo Villas Bôas tuitou uma ameaça velada ao tribunal, que ora se descobre apresentav­a contornos muito mais ameaçadore­s em sua redação original.

Meses depois, um tom acima, um dos filhos do presidente da República afirmou que bastariam um soldado e um cabo para fechar o STF. E, na última semana, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), da base do governo, propalou ofensas e ameaças aos ministros da corte, chegando a instigar agressões físicas contra seus integrante­s.

Em suma, passado mais de um século, o Executivo —às vezes via Forças Armadas— continua useiro e vezeiro em apontar suas armas reais ou simbólicas para a arena togada do outro lado da praça dos Três Poderes, na crença de que ameaças pesam na balança da Justiça. Emilia Viotti da Costa dizia que a história do STF talvez possa ser contada por meio dos momentos em que o Poder Executivo investiu contra sua autonomia e liberdade de decisão.

Em alguns episódios a corte foi subjugada. Mas nem sempre a toga cedeu à baioneta. Em 1893, o tribunal concedeu habeas corpus a parte dos envolvidos na Revolta da Armada, apesar de intensas pressões do governo federal para que não o fizesse. Durante a ditadura militar, em vários momentos a corte decidiu contra os interesses do Executivo, chegando o presidente do tribunal declarar: “Ai da revolução que aviltar a Justiça. Eu fecharei a casa e lhe entregarei a chave”. Em tempos recentes, a Suprema Corte barrou a escola sem partido e afirmou que as Forças Armadas não são o “poder moderador da República”.

A resistênci­a às investidas autoritári­as é parte da história do STF. Orozimbo Nonato dizia que “o tribunal sempre se esquivou, por um imperativo de decência e de fidelidade à sua vocação histórica, ao convite, às vezes tentador e mavioso, de subversão e das evasões da legalidade”.

Quando o Supremo Tribunal Federal mostra independên­cia, garante aos magistrado­s de todo o país a tranquilid­ade para julgar de acordo com a lei, mesmo diante de pressões políticas. A postura e o exemplo são fundamenta­is para a consolidaç­ão de um Judiciário independen­te, que possa decidir sem medo de armas, de fake news, de ataques virtuais ou de ameaças de intervençã­o —ainda que veladas. Essa é a régua pela qual se mede o Estado de Direito.

O STF não pode temer reações políticas ou da opinião pública. Em suas mãos está o respeito à Constituiç­ão, aos direitos e garantias individuai­s. Sua defesa deve ser desassombr­ada, seja quem for a parte ou o réu, seu partido, ideologia ou imagem perante a sociedade civil.

Que as chaves do STF continuem nas mãos daqueles escolhidos para proteger o texto constituci­onal, e que arroubos armados sejam colocados em seu devido lugar. Que as ameaças de Floriano, o tuíte de Villas Bôas, a mensagem de Daniel Silveira e o cabo de Eduardo Bolsonaro constem apenas dos livros de folclore político —e não dos diários oficiais de uma nação que demanda estabilida­de e segurança para sua maturidade institucio­nal.

Que as chaves do STF continuem nas mãos daqueles escolhidos para proteger o texto constituci­onal, e que arroubos armados sejam colocados em seu devido lugar. Que as ameaças de Floriano, o tuíte de Villas Bôas, a mensagem de Daniel Silveira e o cabo de Eduardo Bolsonaro constem apenas dos livros de folclore político

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