Ação nos EUA liga indústria do cacau a trabalho infantil na África
são paulo Uma ação civil pública ajuizada na Justiça federal dos EUA há dez dias tem tudo para transformar um prazer gastronômico —o de comer chocolate— num debate político e indigesto. A ação pretende levar ao banco dos réus sete das maiores fabricantes de chocolate do planeta por ligações com o tráfico de crianças e a exploração do trabalho infantil na África Ocidental, não raro em condições análogas à escravidão.
Nestlé, Mars e Hershey, além de Cargill, Mondelez, Olam e Barry Callebaut, foram citadas na peça elaborada pela organização de direitos humanos International Rights Advocates (IRA).
A autora da ação representa oito jovens do Mali que afirmam ter sido sequestrados para a vizinha Costa do Marfim e forçados a trabalhar em fazendas de cacau em condições degradantes e perigosas, como o uso de facões e a aplicação de pesticidas. A Costa do Marfim é uma das maiores produtoras de cacau do mundo, ao lado de Gana. Juntos, os dois países africanos somam cerca de 60% da produção mundial de cacau, principal matéria-prima do chocolate.
Essa é a primeira vez que a indústria do chocolate é alvo deste tipo de ação no sistema de Justiça dos EUA.
O texto argumenta que essa ação não poderia ocorrer no Mali —a terra natal das vítimas hoje governada por uma junta militar após golpe em agosto de 2020— porque não há legislação local que permita a eles a busca de reparação contra corporações internacionais. O documento alega ainda que a causa não poderia acontecer também na Costa do Marfim, “onde o sistema de Justiça é notoriamente corrupto e incapaz de responder ao clamor de crianças estrangeiras contra grandes corporações do chocolate que geram receitas para o país”.
Segundo o IRA, há décadas as gigantes do chocolate globalizado se beneficiam de um sistema de exploração infantil, sustentado num regime semelhante ao do trabalho escravo, para ampliar margens de lucro sem a respectiva responsabilização. “Desde 2001, essas empresas não podem fugir das evidências esmagadoras de suas relações comerciais com fazendas de cacau que escravizam crianças”, afirma Terrence Collingsworth, diretor-executivo do IRA.
Naquele ano, lembra Collingsworth, algumas das empresas assinaram um acordo internacional liderado por senadores democratas no qual as empresas admitiam o problema e se comprometiam a erradicar as piores formas de trabalho infantil de sua cadeia produtiva até 2005. Vinte anos depois, aquela realidade pouco mudou e o compromisso das empresas com a mudança dessas violações de direitos humanos teve prazo prorrogado, a pedido das mesmas, por três vezes.
“Agora dizem que vão reduzir em 70% o uso de crianças escravizadas só até 2025”, aponta o diretor do IRA. “Ao fazer isso, essas empresas fornecem um apoio substancial às fazendas escravagistas, incitando a continuidade dessa prática horrível.”
Um estudo encomendado pelo Ministério do Trabalho dos EUA ao Centro de Pesquisa em Opinião Nacional (Norc, na sigla em inglês), da Universidade de Chicago, apontou que 1,56 milhão de crianças de 5 a 17 anos trabalhavam em fazendas de cacau na Costa do Marfim e em Gana entre 2018 e 2019. Elas representam 43% das crianças e adolescentes dos dois países da África Ocidental.
O estudo avaliou os esforços para a redução do trabalho infantil no setor do cacau na região e concluiu que áreas que foram alvo de múltiplas intervenções tiveram melhoria nos dados. Mas que o aumento do envolvimento de crianças no setor nas áreas não contempladas pelas intervenções foi tamanha que o saldo é negativo.
Procuradas, as empresas afirmaram condenar o trabalho infantil e degradante, bem como as violações de direitos humanas aliadas a eles, e apontaram para iniciativas de combate a esse tipo de exploração infantil protagonizadas por cada uma delas. A Hershey, em nota, afirmou ter o “compromisso de acabar com isso” e acreditar que eliminar essas violações de direitos humanos requer um investimento significativo de intervenção na região da África Ocidental, não nos tribunais”.
A Nestlé, também por nota, informou que está comprometida “com o combate ao trabalho infantil na cadeia de abastecimento do cacau e com a abordagem de suas causas básicas como parte do Nestlé Cocoa Plan e por meio de esforços colaborativos”.
A Mondeléz, produtora do Toblerone, informou não comentar processos em andamento. A Olam declarou ter “tolerância zero com trabalho forçado ou degradante na sua cadeia produtiva”. A Cargill, em nota, afirmou estar “acelerando nossos esforços para lidar com as causas raízes do trabalho infantil”.
A Barry Callebaut afirmou que mantém um código do produtor com parâmetros que condenam o trabalho infantil. A Mars, por meio de nota, declarou que não comenta processos judiciais.
Especialistas avaliam que a indústria se mexeu pouco para alcançar maior rastreabilidade da cadeia produtiva.
Segundo o texto da ação ajuizada, a denúncia quer “não só expor crimes do setor do cacau mas também desmantelar a fonte de seus lucros significativos: mão de obra barata adquirida por meio do tráfico infantil. Eles esperam também que, ao falar publicamente sobre os horrores do tráfico e da escravidão infantil, possam educar melhor o público, consumidores e membros do governo”.
Os meninos alegam terem embarcado num ônibus no Mali, iludidos por promessas de trabalho bem remunerado, e terminado do outro lado da fronteira, na Costa do Marfim, em fazendas de cacau onde atuavam sem remuneração.